A vida é a arte da chegada. E também da partida. Sobre ambas temos pouco controle. A existência apresenta-se como grande mistério, e nada do que possamos dizer acerca de razões ou motivações deixará de ser hipótese. Se sobre o que veio antes e o que virá depois temos pouca clareza, em relação ao estar aqui, a esse período que nos é dado perambular sobre a Terra, aí já temos algum controle.
E o que fizermos dele, para o bem ou para o mal, constituirá a marca de nossa passagem, será a luz (ou a escuridão) que projetaremos sobre nosso próprio tempo e, tendo sido bem-sucedidos, até sobre tempos vindouros. E é sobre esse exercício que gostaria de me debruçar, tomando como referência duas pessoas que foram luz intensa. Há seres que tornam o mundo um lugar bem melhor para viver. Deixam calor humano que permanecerá talvez para sempre.
A primeira das pessoas a que me refiro é dona Gilda Rauber, que faleceu no início do mês. Ao recordarmos dela, não conseguimos conter sorriso de ternura, pois imprimiu sua marca no coração da gente. Eu ainda era bem jovem quando, já integrado à equipe da Gazeta do Sul, comecei a ler seus saborosos textos sobre culinária. Fui tocado por seu entusiasmo em compartilhar receitas. Dava dicas que, expert, havia forjado em suas explorações de ingredientes.
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E lembro das surpresas que proporcionava. Quando menos esperávamos, eis dona Gilda aparecendo na Redação, sorridente, com apetitosos bolos, tortas, salgados. “Pensei que vocês talvez gostariam de provar o resultado de uma receita que andei testando”, dizia, divertida com nossa gulosa reação. Assim era dona Gilda. A sua autenticidade faz com que permaneça na memória de cada um, que, por tê-la conhecido, tem o compromisso de dar continuidade a esse valioso legado de afeto.
E ao recordar de dona Gilda acabo por mencionar seu Backes. Quem conheceu seu Backes, Luiz Alberto Backes, é impossível que o esqueça. Dona Gilda nos brindava com seus doces. Pois seu Backes aparecia todas as semanas, simpático e sorridente, com… recortes de jornais! Recebia, lia e selecionava textos (Estadão, Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo) e, ciente das áreas de interesse dos repórteres, deixava em suas mesas as páginas com recados anotados.
Logo incluiu-me entre os destinatários. Por anos brindou-me com matérias sobre literatura, cinema, artes. Emprestou-me filmes e livros. Um dia veio a notícia de que estava doente. Por semanas não apareceu. Qual não foi a surpresa quando, certo dia, lá veio ele, subindo a escada, ainda fragilizado, para distribuir mais recortes. Tempo depois, veio a falecer. Recentemente, vasculhando guardados na casa dos meus pais, eis que deparo com recortes de jornais. Neles, os recados de Backes, a lápis. “Romar, sugiro esta leitura”, com passagens sublinhadas e circuladas, ou divertidos comentários. Não pude conter a emoção às palavras reaquecidas.
Dona Gilda. Seu Backes. Cada qual a seu modo, com sua energia, elevando a humanidade. Dona Gilda com seus acepipes, confortando o nosso corpo. Seu Backes, com seus recortes, ampliando o nosso saber. Desse jeito, fomos muito melhor nutridos para a vida, entre chegadas e partidas.
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