O narrador do novo livro do escritor britânico Ian McEwan, Enclausurado, é um intelectual humanista, racional, um virtuoso enólogo amante de uvas pinot noir. Ele cita expressões em latim para articular seus pensamentos, admira poetas, tem uma noção segura da poesia inglesa e reflete com alguma profundidade sobre a crise na Europa. Ele está envolvido no clássico plot de Hamlet: sua mãe e o irmão de seu pai planejam a morte do progenitor. Ele deve agir. O problema é sua condição de feto: “Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher”, começa o narrador.
Sobre o livro e os assuntos relacionados, McEwan conversou com o jornal “O Estado de S. Paulo” num hotel de São Paulo – ele participa de um encontro com David Grosmann, no Sesc Pinheiros em comemoração aos 30 anos da Companhia das Letras.
Esse narrador tem um ponto de vista extremamente restrito, mas é um intelectual. Como você equilibrou essa balança?
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Pensei que quanto mais racionalmente intelectual ele fosse, mais divertido seria. É divertido ele saber quase tudo que se tem para saber sobre as coisas. Vinho, comida, história, estética. Ele é um bebê do pós-Iluminismo. A grande coisa de um feto como narrador é a forma de inocência primária. Ele não tem inimigos, endereço, religião, afinidades, então você pode escrever um herói existencial. Ele é apenas uma voz no escuro, falando.
É difícil ler esse livro e não pensar na questão do aborto.
Não acho. Só os americanos parecem tão obcecados com isso. Nenhum tipo de política social deve ser baseado nesse livro (risos). Isso não é uma fórmula para pensamento sensível sobre o aborto. Enquanto estava escrevendo, isso nem me passou pela cabeça. Um jornalista americano me perguntou se esse era um romance pró-vida, e eu respondi que todos os romances são pró-vida (risos). É fácil, foi divertido dizer. Mas abortar esse bebê em específico seria um desperdício. Ouça ele, você quer que ele nasça!
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O narrador diz que a Europa balança entre o medo e a pena, entre ajudar e repelir… Como essa Europa é diferente daquela em que você cresceu?
A Europa em que cresci estava se definindo como União Europeia. Que é uma ideia que está sob constante ataque agora. Os partidos de direita sempre pregaram “medo” de outras pessoas. O projeto europeu está em questão esses dias, não só porque a Inglaterra está saindo, o que eu acho que é um grande erro, uma peça monstruosa de autoflagelo. Mas não é só isso. Mas as alternativas vindas de partidos de extrema direita estão realmente destruindo aquele ideal. Uma vez que os pontos comecem a ser rompidos… A Europa tem um grande potencial violento, como vimos na primeira metade do século 20. Então, me preocupo. Gostaria que tivéssemos sido corajosos e audazes para permanecer nesse projeto.
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Ele menciona também os ataques terroristas de 2015 em Paris, e culpa a fé. Por que a humanidade não conseguiu equilibrar fé e conhecimento?
Eu não gostaria de equilibrar fé com coisa nenhuma. É uma força completamente destrutiva. Não sei como o cristianismo veio a acreditar que a crença infundada era uma virtude. Em outras palavras, uma coisa é acreditar em Deus, mas acreditar que crer em Deus é uma virtude… Vamos lá, eu acredito que a evolução natural é verdade, mas não acho que sou virtuoso por isso. Nós vemos a face assustadora da fé em incidentes como o do Bataclan.
Você sente uma desconexão entre o esquema dos intelectuais e a “realidade”?
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Sim, com o Brexit, com o apoio a Trump. Os movimentos populistas na Europa. Todo mundo se esquece de que em alguns meses a Holanda vai ter um referendo para sair da União. A terra de Espinoza. Uma das terras mais abertas, poliglotas do mundo. Isso seria um grande choque também. É muito difícil. Essa situação está cozinhando por pelo menos uma geração. E não se encaixa no esquema dos intelectuais.
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