Mais de 1,8 mil quilômetros separam Santa Cruz do Sul de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, a 840 metros de altitude. Mas, por mais curioso que possa parecer, muitas coisas as aproximam. Por exemplo: a influência da imigração alemã em sua formação. E, por lá, o Bicentenário da chegada dos primeiros colonos inclusive já transcorreu, em 3 de maio.
Até mesmo no resgate histórico de Nova Friburgo houve contribuição de um santa-cruzense. O pastor Armindo Laudário Müller foi o pároco da Comunidade Evangélica Luterana local entre 1998 e 2008. Nesse período, a partir de suas pesquisas, lançou o livro O começo do protestantismo no Brasil, de 2003.
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Agora, quando o Vale do Rio Pardo (e boa parte do Estado) sofre com enchente sem precedentes, os friburguenses recordam: a Serra do Rio de Janeiro passou por um desastre climático em janeiro de 2011, que deixou 918 mortos naquela região. De lá, moradores acompanham com angústia e apreensão
a tragédia no sul.
As celebrações do Bicentenário da Imigração Alemã no Brasil remetem a São Leopoldo, onde os primeiros colonos chegaram em 25 de julho de 1824. Mas, em território brasileiro, um grupo pioneiro do projeto colonial do Império havia se fixado em outra região mais de dois meses antes.
Foi em 3 de maio que as primeiras famílias germânicas chegaram a Morro Queimado, ou Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, a cerca de 130 quilômetros da então capital do nascente Império brasileiro, a 840 metros de altitude.
Ali já existia uma colônia formada por imigrantes suíços entre 1819 e 1820, daí advindo o nome da localidade, que remete à suíça Friburgo. Os alemães foram juntar-se a esses pioneiros. Não se adaptaram bem ao ambiente. Trazidos com o propósito de cultivar a terra, não encontraram condições para isso em terreno muito rochoso.
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Em função disso, alguns dos primeiros alemães buscaram alternativas: uns fixaram-se no entorno ou foram para a capital do Império, e outros ainda optaram por ir para o Rio Grande do Sul, tão logo São Leopoldo e as demais colônias floresceram. Porém, desde o primeiro momento as marcas alemãs permaneceram fortes. A mesma data, de 3 de maio de 1824, é tida como a do início da presença da religião protestante no País. O grupo de colonos, de evangélicos luteranos, viera acompanhado do pastor Friedrich Oswald Sauerbronn, que atuou na comunidade ali criada, entre 1824 e 1864.
Outro pastor se dedicou a resgatar o pioneirismo de Nova Friburgo para a religião protestante no Brasil. E é um santa-cruzense. Armindo Laudário Müller, que faleceu em Santa Cruz do Sul, sua terra natal, em 29 de novembro de 2022, aos 80 anos, assumira como pároco da Comunidade Evangélica de Nova Friburgo, depois de atuar em Santa Cruz e Arroio do Tigre.
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Afeito a pesquisas históricas, tão logo chegou à Serra do Rio de Janeiro, Müller passou a investigar o passado local. Seu livro O começo do protestantismo no Brasil, publicado em 2003 pela EST, já próximo às celebrações dos 180 anos de imigração alemã, trouxe contribuição valiosa para restabelecer a importância da colonização alemã em Nova Friburgo. E relacionando os primeiros colonizadores.
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Se o movimento inicial de fixação de imigrantes germânicos naquela região não chegou a ter a mesma abrangência que depois se veria no Sul do País, um segundo momento, já no início do século 20, teve ampla projeção. Nesse caso, a cidade atraiu empresários alemães que ajudaram a alavancar a socioeconomia, com reflexos até os dias atuais. Em paralelo, entidades e instituições valorizaram o legado cultural.
Agora, por ocasião do Bicentenário, um livro que acaba de ser lançado une-se ao esforço memorial. É A Pequena Alemanha: 200 anos da Imigração Alemã em Nova Friburgo. O volume foi lançado no dia 4 de maio e compartilha ainda texto de um viajante, o comerciante alemão Ernst Hasenclever, que passou por aquela região em 1840, 16 anos após a chegada dos primeiros alemães.
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Uma nova geração de pesquisadores atualmente dá a sua efetiva contribuição para elucidar as circunstâncias nas quais se fixaram imigrantes alemães em Nova Friburgo. Dela faz parte a historiadora Vanessa Cristina Melnixenco, 34 anos, nascida na cidade do Rio de Janeiro, de pai descendente de ucranianos. A família da mãe era oriunda da área serrana do Estado. Ela cresceu em Curitiba; em sua adolescência, a família se fixou em Nova Friburgo.
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Afastada que fora de suas amizades e da rotina vivida até então no Paraná, num primeiro momento diz ter se sentido um tanto deslocada em sua nova cidade. Foram justamente as leituras de cunho histórico, sobre o passado regional, que acenderam nela a curiosidade, o carinho e, mais, o entusiasmo em torno do passado regional.
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Como historiadora e logo mestre na área, vinculou-se a instituições locais que fomentam a pesquisa. Assim, seus estudos resultaram em publicações científicas e livros. Referencial é Nova Friburgo: 200 anos da memória do passado ao projeto de futuro, de 2018. No início deste mês de maio foi acrescentada a essa bibliografia o volume A pequena Alemanha, que ela organizou ao lado de Débora Bendocchi Alves, em iniciativa da Fundação D. João VI, junto à qual também atua.
Em sua formação, Vanessa teve oportunidade de conversar com o pastor santa-cruzense Armindo Laudário Müller, quando este trabalhou na Comunidade Evangélica Luterana naquela cidade, como ela detalha em entrevista (à direita).
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Por lá, pastor Müller, com sua esposa Marina, também acolheu e ciceroneou a equipe da Gazeta do Sul em 2004, quando esta percorria o Brasil no levantamento de informações que resultaram no livro Terra de bravos, alusivo aos 180 anos da imigração alemã no País.
Vanessa Cristina Melnixenco – Historiadora de Nova Friburgo
Gazeta do Sul – Nova Friburgo registrou dois momentos de imigração alemã, o de 1824 e um segundo, já no começo do século 20. O que os particularizou?
Os pioneiros alemães chegaram a Nova Friburgo nos dias 3 e 4 de maio de 1824. Foram recrutados um ano antes pelo major Schaeffer, representante oficial do Brasil nos Estados Alemães. A princípio, o grupo seguiria para as colônias Leopoldina e Frankenthal, no sul da Bahia. Porém, logo após terem chegado a terras brasileiras, em 25 de janeiro de 1824, o governo imperial decidiu estabelecê-los em Nova Friburgo.
A ideia partiu de monsenhor Miranda, inspetor dos colonos alemães. Provavelmente, sua experiência anterior como administrador da colônia de Nova Friburgo e a dispersão dos colonos suíços levaram-no a cogitar essa alternativa. Os colonos provenientes dos dois primeiros navios (o Argus e o Caroline) foram enviados a Nova Friburgo. Formavam um grupo pequeno, em torno de 300 pessoas. A maioria desses imigrantes era composta por cristãos de confissão luterana. Assim, com a chegada dos alemães a Nova Friburgo, considera-se também a criação da Igreja Luterana, a primeira da América Latina.
Esses colonos contribuíram para um perfil singular de Nova Friburgo. Sua presença foi um atrativo para a vinda de mais estrangeiros no início do século 20, quando outro grupo de alemães trouxe a industrialização e um novo rumo para a história da região. Peter Julius Ferdinand Arp (1858-1945) e Maximilian Falck (1865-1944) residiam no Brasil há muitos anos e estavam à procura de uma sede para suas indústrias. Os dois viram inúmeras vantagens nas terras friburguenses e, com apoio político local do médico Galdino do Valle Filho, conseguiram se estabelecer na cidade.
Julius Arp, depois de inaugurar a energia elétrica em Nova Friburgo, fundou sua fábrica de rendas em 1911, produtora de fios e bordados; no ano seguinte, foi a vez de Maximilian Falck criar a fábrica Ypu, responsável pela produção de artefatos de tecido, couro e metal. O processo de industrialização se consolida com a instalação de mais duas indústrias de capital alemão, a Fábrica de Filó (1925) e a HAGA (1937), ambas cooptadas a partir da iniciativa de Arp. Essa hegemonia industrial alemã induziu até mesmo a organização espacial de Nova Friburgo: as sedes das quatro empresas estão arranjadas nas extremidades de um quadrilátero imaginário que abraça o núcleo urbano.
Além do luteranismo, que outras marcas persistem?
Segundo o pastor e historiador Adélcio Kronbauer, o luteranismo persistiu em Nova Friburgo porque a igreja representava o espaço de unidade para os alemães e seus descendentes, fossem ricos ou pobres. Era nos encontros religiosos que a comunidade alemã se integrava e preservava sua cultura, especialmente o idioma. Além do luteranismo, hoje há uma forte presença dos sobrenomes alemães, sobretudo dos pioneiros, mesmo que com corruptelas. Algumas famílias ainda guardam objetos, saberes e memórias passados de geração a geração.
Língua, culinária e artes seguem fortes?
Em Nova Friburgo, a língua alemã ficou restrita à Igreja Luterana. Os cultos no idioma estrangeiro foram realizados até 2016. Por outro lado, a gastronomia alemã é bem difundida, tanto por restaurantes especializados como nos lares de famílias de tradição germânica. De uns anos para cá, a produção de cerveja artesanal tem novamente ganhado destaque. Sua origem remonta a 1861, quando o alemão Pedro Gehart solicitou a abertura de uma fábrica.
O polo industrial de Nova Friburgo também tem origem no capital alemão. Até a década de 1980, as indústrias locais foram mantidas sob a hegemonia de grupos relacionados aos empresários alemães do início do século. Hoje, empresas de origem alemã, como a Arp e a Ypu, têm resgatado sua história e ressignificado seus patrimônios. O Centro Cultural Teuto Friburguense (conhecido como Colônia Alemã) difunde diferentes expressões artísticas, sobretudo a dança típica. No calendário municipal, algumas festas são tradicionais, como a Festa da Cerveja e a Festa do Colonizador, realizada desde 1966.
Um santa-cruzense, o pastor Armindo Müller, atuou em Nova Friburgo. Tiveste contato pessoal com ele?
Sim! Conheci o pastor Armindo Müller quando passei a frequentar a igreja luterana, no final de 2008. Ele estava se aposentando, mas tive a oportunidade de assistir a alguns de seus cultos. Como estudante do primeiro ano da faculdade de História, também o admirava muito pelo seu lado de pesquisador diletante. Além de uma década dedicada à comunidade luterana de Nova Friburgo, o pastor Müller residiu na cidade até 2012. Nesses 14 anos, muito contribuiu para a cultura friburguense: foi sócio efetivo da Academia Friburguense de Letras e fundador e ex-presidente do Centro Cultural Teuto Friburguense.
Em 2009, assumiu o cargo de Relações Internacionais na Prefeitura e colaborou em prol da pesquisa, da genealogia e da criação de um museu, temas que hoje fazem parte do propósito da Fundação D. João VI. O grande legado do pastor Armindo foi decifrar os antigos registros luteranos, manuscritos em Sütterlin, e publicá-los no livro O começo do protestantismo no Brasil (2004), referência para pesquisadores e descendentes dos pioneiros. Com grande tristeza recebemos a notícia de seu falecimento no final de 2022, tão perto do Bicentenário da imigração alemã. Em reconhecimento à sua contribuição para a história dos alemães em Nova Friburgo, decidimos dedicar o livro comemorativo do Bicentenário em sua memória.
Como se celebra o Bicentenário da imigração na região?
Em maio também é comemorado o aniversário de Nova Friburgo; portanto, as celebrações estão se estendendo ao longo deste mês, mas os eventos mais significativos ocorreram no fim de semana de 3 a 5 de maio, data que marca o Bicentenário da imigração alemã na cidade. Os festejos se dividiram entre formalidades, como o hasteamento de bandeiras, zerar o cronômetro e lançamento de selo, e momentos de descontração: shows, encontros e cortejo das famílias alemãs.
A Igreja Luterana fez belíssimas celebrações ao longo dos três dias, com badalar dos sinos, meditação e cultos, um deles na praça onde os alemães pioneiros residiram. Nesse mesmo local, a Prefeitura, por meio da Fundação D. João VI, inaugurou o monumento do Bicentenário, que leva o nome do primeiro pastor luterano do Brasil, Friedrich Oswald Sauerbronn. As duas instituições também lançaram o livro e a exposição comemorativos, ambos denominados A pequena Alemanha.
A vasta programação para os três dias foi elaborada pelo Comitê do Bicentenário da Imigração Alemã em Nova Friburgo, formado por entidades públicas, particulares e religiosas, e teve grande adesão, tanto da população como de visitantes. Ao longo do mês, ainda ocorrerão a Festa da Cerveja e um festival gastronômico inspirado na cozinha alemã.
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