O Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, tem motivado eventos e reflexões na região. Se há iniciativas recentes ou circunstanciais, bem diferente é o histórico de alguns profissionais que atuam na área há décadas. E poucos cidadãos talvez carreguem currículo de tal envergadura como é o caso do caxiense Jorge Antonio de Farias.
Formado pela UFSM, junto à qual também se doutorou, por 25 anos trabalhou na Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), e nela implantou o Viveiro Florestal, em 1987, o que lhe rendeu, em 2017, uma placa de reconhecimento entregue pelo presidente da entidade, Benício Albano Werner. Em 2011, retornou à UFSM, agora para lecionar no Departamento de Ciências Florestais.
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Mas a história de Farias com Santa Cruz jamais se encerrou. A começar pelo fato de que segue residindo na cidade. Aos 62 anos, nascido em Caxias do Sul em 18 de maio de 1962, deixou sua terra para estudar na UFSM, em 1980. Já em 1986 veio para Santa Cruz, iniciando o vínculo que nunca mais se rompeu. Casado com Cristine Bergonsi de Farias, que trabalha com costura criativa, com ela tem os filhos Camila, formada em Medicina pela Ufrgs; Diego, que está concluindo Engenharia de Computação pela Ufrgs; e Luana, em vias de iniciar Arquitetura, também na Ufrgs.
Em entrevista, Farias reflete sobre o atual (e complexo) momento das políticas ambientais, levando em conta o microambiente local e o macroambiente global.
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Gazeta do Sul – Com a sua experiência profissional, como o senhor avalia a situação florestal em Santa Cruz do Sul e no Vale do Rio Pardo?
Jorge de Farias – Quando analisamos a questão florestal, é preciso separar em áreas urbanas e áreas rurais. Por que isso? A sociedade em geral transfere para o meio rural a solução e inclusive a geração de grandes problemas ambientais.
Historicamente, o problema das florestas é delegado ao meio rural. Obviamente que tem o maior peso e significado, afinal de contas estamos falando de grandes extensões de terras. Mas as áreas urbanas utilizam isso para se isentar ou se eximir de responsabilidades em relação à conservação dos recursos florestais.
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Objetivamente, a situação florestal no meio rural, tanto em Santa Cruz como em todo a região, melhorou, e muito. Atualmente, temos 37% do território do Vale do Rio Pardo coberto por florestas, sendo a esmagadora maioria de florestas nativas em diferentes estágios de crescimento. Esse grande crescimento e dá por vários fatores: diminuição das famílias rurais, grande oferta de florestas plantadas que faz com que não haja interesse em avançar sobre as nativas, aumento da conscientização da população rural sobre os benefícios da conservação, crescimento de uma estrutura cidadã que auxilia na fiscalização. É fundamental destacar que, com todas as severas secas que o Vale enfrentou, os seus recursos hídricos não se esgotaram. Isso, absolutamente, está relacionado à grande cobertura florestal que a região tem.
Contudo, na área urbana se vê o caminho contrário. As florestas são problemas nos loteamentos, são problemas na arborização urbana, e por aí vai. A qualidade de vida da área urbana tem uma relação fundamental com a existência de árvores nas vias públicas e demais espaços. São as florestas que ajudam, por exemplo, a regular o microclima da área urbana. É preciso fazer uma profunda reflexão sobre a legislação e todo o regramento de uso e ocupação das áreas com florestas no meio urbano; ela precisa passar do conceito de problema para a ideia da conservação pelo uso.
O senhor entende que a realidade florestal, no Estado e no País, é sustentável, quando se mira o futuro? O Brasil planta para suas necessidades, ou menos do que deveria?
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Complexa a pergunta. O Brasil é o país de maior diversidade arbórea do planeta, mas sua base florestal é de espécies exóticas. Então, se estivermos falando de uso sustentável de florestas nativas, eu diria que não, que estamos regredindo nesse aspecto, regredindo a sociedade e a academia.
Veja só: 99% da demanda por produtos florestais madeireiros no Brasil é atendida por espécies exóticas, predominantemente pelo eucalipto e pelo pinus. Naturalmente que todo o esforço de pesquisa e inovação vai por esse caminho. Então por que não usamos nativas, por que não pesquisamos nativas? Porque temos uma cultura excessivamente preservacionista. Aqui é importante esclarecer a diferença de preservar e conservar: a preservação é algo intocável, já na conservação é possível usar os recursos florestais, desde que se garanta suas funções ambientais e a produção sustentável. É o que procurei construir a minha vida profissional toda, um mantra: precisamos conservar pelo uso.
Enquanto continuarmos excessivamente preservando as florestas, isso vale para as áreas urbanas, mais nós vamos afastar o conjunto da sociedade para o campo da conservação e para o uso responsável. Por isso que se prega a incompatibilidade de ocupação do solo urbano com a presença de floresta nos terrenos, por isso se consolida o conceito da incompatibilidade da floresta com a agricultura e a pecuária, e por aí vai.
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Diria que em termos de florestas plantadas estamos muito bem, somos um exemplo para o mundo, o hemisfério norte vem buscar a tecnologia que temos e desenvolvemos para a silvicultura de pinus e eucalipto.
Mas, infelizmente, em relação às nativas temos uma dívida enorme, tanto em valorização como na implementação de ferramentas que garantam o seu uso sustentável. A primeira medida para rever isso é estabelecer, na legislação, o conceito da Conservação pelo Uso.
A floresta, nativa ou plantada, pode ser entendida como um bom negócio, um negócio de futuro?
Vamos dividir a pergunta em duas partes. A floresta plantada será um bom negócio, sem dúvida. Isso porque a demanda por produtos florestais é constante e crescente. Segundo: haverá uma tendência de consumir mais madeira, pois a madeira é sinônimo de retirada de carbono da atmosfera e uma estratégia para evitar as mudanças climáticas. Quanto mais madeira em móveis, casas etc., menos carbono na atmosfera. Além disso, com o avanço da soja, muitas áreas com florestas plantadas foram substituídas por lavouras. Já há uma forte pressão sobre as florestas remanescentes, para lenha, serraria ou celulose. Imagino que, num espaço de dois anos, os preços de lenha e madeira para serraria irão dobrar ou ficar próximo disso.
A floresta nativa tem grande oportunidade de ser remunerada através da produção de produtos não madeireiros, como frutos, mel etc. Mas a grande sacada para as florestas nativas será o mercado, ainda incipiente, para pagamento por serviços ambientais. Sem florestas nativas não temos água, não temos biodiversidade, não temos polinizadores, apenas alguns exemplos, e todos os agricultores, especialmente os familiares, que conservaram suas áreas com florestas naturais têm uma interessante oportunidade de obter uma complementação de renda. A UFSM está assessorando uma importante entidade aqui em Santa Cruz para a construção de um Programa de Pagamento para Serviços Ambientais. Estamos bem animados com as perspectivas de implementar essa ferramenta aqui no Vale do Rio Pardo como um projeto-piloto.
O que os profissionais que atuam em sala de aula, na graduação ou na pós-graduação, buscam transmitir a respeito da gestão ambiental, e que pode servir para a sociedade como um todo?
Sempre fui um cara urbano, nunca morei no interior, meus pais foram trabalhadores do parque industrial em Caxias do Sul e a minha relação mais próxima com o tema ambiental eram as pescarias. Mas, mesmo sendo totalmente urbano, sempre tive interesse por plantas e pela terra. Na adolescência pensava em fazer Agronomia, mas quando fui para Santa Maria fazer a inscrição no vestibular, conheci o curso de Engenharia Florestal e me identifiquei muito com a área. E nunca me arrependi da escolha que fiz. Amo a minha profissão, especialmente pela sua importância em relação aos recursos naturais e aos elementos da natureza.
Na vida profissional, descobri uma veia voltada à extensão, ou seja, aquelas ações e práticas realizadas para transferir e compartilhar conhecimento com as populações rurais. Nos meus 25 anos de Afubra, foi uma das minhas atividades de que mais tenho saudades: conviver, visitar os produtores e suas famílias, compartilhar experiência e aprender com eles. Foi a partir dessas atividades de extensão que me descobri como professor. E, na verdade, a ida para a UFSM não estava no meu projeto de vida. São aquelas coisas que a gente acha que o cosmos conspira a favor, foram vários fatores que aconteceram naquele ano de 2010 e acabaram me levando para a UFSM em 2011.
O senhor também atuou junto a entidades na área ambiental. O senhor entende que organismos, públicos ou privados, compreendem a real importância dessa área?
Boa essa questão, porque o pessoal em geral acha que os avanços que temos são por causa da mudança da legislação e da ação de ONGs. Claro que, se fizermos um balanço, veremos que as ações de grande impacto estão no meio rural. Temos hoje recolhimento de embalagem de agrotóxicos, programas de pagamento por serviços ambientais acontecendo, temos agroecologia forte, estamos avançando com sistemas agroflorestais. É uma revolução, e por aí vai. Mas na área urbana não vemos nada disso.
Continuamos tendo problemas de coleta seletiva, podas irregulares, avanços sobre o Cinturão Verde, a total remoção da vegetação arbórea dos loteamentos, problemas de saneamento em relação a esgotos etc. E não temos organismos, a exemplo do meio rural, procurando alertar a população para a necessidade dessas mudanças. Apesar de a legislação ser a mesma. Então, sim, entidades públicas e privadas são fundamentais para garantir os avanços alcançados até aqui e são a garantia de que vamos continuar avançando.
Quando se fala em florestas plantadas com finalidade energética, em que medida elas estão implicadas na qualidade do ecossistema como um todo?
É fundamental deixar claro que não se consome florestas nativas para nenhuma finalidade, nem para madeira para serraria e nem para energia. A sociedade brasileira fez uma opção por ser 99,9% dependente de florestas plantadas. Absolutamente tudo que consumimos de produtos florestais vem de florestas plantadas, ou é eucalipto ou é pinus. Consumimos produtos dessas florestas sem saber: 100% das embalagens, nós temos celulose no queijo, nas salsichas, a celulose está na capa dos salames industrializados, temos celulose em fraldas, temos camisas e outras peças de roupas feitas de celulose, e ninguém se dá conta disso.
Nossos móveis são de madeira de florestas plantadas; hoje, o que mais se usa é o MDF, chapas para fazer móveis, portas, rodapés, e outras molduras são totalmente de florestas plantadas. E, novamente, florestas plantadas significam eucalipto ou pinus. Como disse antes, é uma pena que o país de maior diversidade arbórea tenha feito a opção por espécies exóticas.
A gestão ambiental que o senhor testemunha na região lhe agrada? O que mais destoa do que seria pertinente, e no que a região acerta?
Estou na região há quase 40 anos. Acho que avançamos muito e fico satisfeito com as conquistas que a sociedade fez até aqui. Mas preciso enfatizar que o grande problema ambiental, do ponto de vista da sustentabilidade, são as áreas urbanas e não as áreas rurais.
Nas áreas urbanas temos concentração de energia, de consumo, de descarte etc. A área urbana continua exercendo pressão enorme sobre os remanescentes de florestas naturais. É muito contraditório ver a sociedade urbana cobrando cobertura florestal no meio rural (ou se importando com ela), quando não faz a menor gestão das áreas verdes dos loteamentos. Gostaria muito de ter um relatório de como estão e como são usadas todas as áreas verdes regulamentadas em todos os loteamentos licenciados. Quero destacar que não falo do município de Santa Cruz; falo das cidades em geral, porque o cenário é o mesmo.
Essa gestão do verde em realidade urbana, como pode ser avaliada em Santa Cruz, por exemplo?
O verde é o que mais chama a atenção na pauta ambiental. Mas não é só o verde. Temos que pensar no uso de combustível, transporte coletivo, energias alternativas, reciclagem, consumismo etc. Mas especificamente sobre o verde em Santa Cruz, me preocupa muito a forma como está se dando a urbanização das encostas e topos de morros aqui. Sabidamente são áreas instáveis e deveriam ter regramento específico para sua ocupação.
Os novos loteamentos também me preocupam, porque é o modus operandis atual remover toda a vegetação. É uma lástima que chegamos ao ponto de considerar um terreno com árvores nativas um problema, e que isso dificulta a comercialização e a valorização do imóvel. Compreendo a posição do empreendedor, mas precisamos mudar isso, precisamos mudar essa lógica de que o meio ambiente (vegetação nativa) é um problema.
Ainda sobre os loteamentos, falta um programa claro de como vai se dar a arborização. O poder público não regra isso, ou é muito discreto nessa ação. E a arborização urbana é fundamental para a qualidade de vida: regula o microclima, transmite bem-estar e tranquilidade, reduz a poluição do ar, diminui a poluição sonora, abrigo para a fauna etc., e isso precisa voltar urgentemente para pauta.
Falando em verde, não tem como não falar do Túnel Verde, um cartão-postal da cidade. A boa notícia é que se percebe uma mobilização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente para desenvolver ações de conservação, manutenção e ampliação do Túnel Verde. Acho que esse aprendizado que a Semas está adquirindo com o Túnel Verde deve ser espraiado para toda a arborização da cidade.
A floresta tende a ser um negócio com bom futuro?
Com certeza. Mas, como é uma atividade de longo prazo, ela precisa ser bem planejada, especialmente no sentido de qual é o propósito do negócio florestal: é madeira para serraria, para processo, energia; é um projeto de cunho ambiental etc.
A legislação atual regra claramente toda a atividade, inclusive prevendo a possibilidade de plantar espécies nativas para fins comerciais.
Há muita desinformação sobre isso, desde a “lenda” de que eucalipto seca o solo, passando por outra lenda de que as acículas (folhas) dos pinus furam os olhos de passarinhos, até a maior fake news: de que, se plantar nativas, não será possível cortar. Na verdade, nunca entendi o que está por trás desse tipo de desinformação.
E para estudantes, a área ambiental oferece bom campo para atuação?
As oportunidades estão muito mais relacionadas ao perfil das pessoas do que propriamente às oportunidades. A primeira coisa que precisa ficar clara para qualquer profissão: estou procurando emprego ou trabalho? Isso diz muito sobre a paixão que cada um tem pela área que escolheu. Essa área tem muito trabalho para ser feito, precisa de pessoas de fibra, de atitude, inovadoras e empreendedoras.
Além disso, é necessário a gurizada se dar conta de que só o canudo não é sinônimo de uma boa colocação, emprego etc. Atualmente, em qualquer área, há centenas de cursos de todos os tipos, presenciais, EAD etc. O profissional que quer ter sucesso precisa se diferenciar, ter uma formação ao mesmo tempo abrangente, mas que reflita a sua capacidade e o domínio sobre especificidades.
Objetivamente respondendo a tua pergunta: acredito que, neste cenário de emergência climática e aquecimento global, as profissões que têm um pé no tema meio ambiente terão muita visibilidade e, consequentemente, oportunidades.
O que o senhor vê em termos de educação no Brasil lhe agrada? Que lacunas o senhor mais lamenta, e o que apontaria como acertado?
O grande problema da educação no Brasil é a valorização dos professores e a falta de estrutura física da educação no Brasil, especialmente no Ensino Fundamental. É urgente que os professores em geral, mas muito especialmente os do Fundamental, tenham uma valorização. Essa valorização não passa apenas pela questão salarial, mas pelo respeito que a sociedade deve ter com esses profissionais. Ao mesmo tempo, as escolas estão sendo fisicamente sucateadas. Infelizmente, a pandemia mostrou o abismo que existe entre a escola pública e a privada. É fundamental reverter isso para que possamos ser uma nação desenvolvida. Educação é investimento, como dizia o Brizola; cara é a ignorância. Exemplos disso não faltam na história recente do Brasil.
No Dia Mundial do Meio Ambiente, que recado deixaria para os leitores, para a sociedade?
Precisamos urgentemente mudar a ideia que ouvimos desde criança: a natureza é nossa, temos que preservá-la. Precisamos mudar isso para: nós somos a natureza e precisamos nos preservar. Não é só um jogo de palavras, pois reflete como vemos a natureza. Crescemos com uma visão de que ela está aí para nos servir, como se a gente não fizesse parte da natureza, e isso tem levado à exaustão grave de muitos recursos naturais, mesmo os renováveis.
Em relação à questão ambiental, me parece urgente a mudança de paradigma em relação aos remanescentes de florestas naturais;, ou seja, precisamos caminhar em direção às ações que garantam a conservação pelo uso, que garantam os processos ecossistêmicos, que resgatem o etnoconhecimento etc.
É importante entender que os recursos naturais são renováveis apenas se atuarmos de forma racional e munidos do conhecimento científico. É a única forma de garantirmos, efetivamente, um ambiente saudável para essa e para as próximas gerações.
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