Rádios ao vivo

Leia a Gazeta Digital

Publicidade

Fora de pauta

Nós, os palhaços

Nos últimos tempos, tenho me lembrado muito de uma esquete que Jô Soares fazia nos anos 80, na qual aparecia trajado, dos pés à cabeça, como um palhaço. Quando abordado, porém, o personagem repetia: “Eu estou com nariz de palhaço, cabelo de palhaço, chapéu de palhaço, mas não sou palhaço.” Alguém questionava, então, por que estava vestido daquela forma, ao que ele respondia: “Porque estão me fazendo de palhaço.”

Neste momento em que avizinha-se uma nova disputa presidencial, assusta-me o nível cada vez mais rasteiro do debate público no Brasil. O problema não está na polarização – que, se pensarmos bem, nada tem de novo –, mas nas narrativas que aguçam essa divisão na sociedade.

Já faz alguns anos que nosso viciado establishment político sustenta-se em um divisionismo radical. Começou com o “nós e eles” em 2014, ampliou-se com o impeachment de 2016 e explodiu em 2018. Os duelos eleitorais, antes baseados em projetos e carismas que inspiravam a preferência de eleitores pelos candidatos, passaram a amparar-se na negação. Prévia a qualquer adesão a uma legenda, um programa ou uma personalidade, está agora a rejeição absoluta à alternativa antagonista. E não é por acaso: são discursos, cuidadosa e estrategicamente concebidos por poderosas máquinas de populismo e desinformação, que alimentam o medo e aprofundam o distanciamento.

Publicidade

O resultado é esse embate esdrúxulo diário, sobretudo nas redes sociais, onde ganha quem grita mais alto e quase todos se mostram cegos às contradições de um ou outro polo – e, inclusive, ao que eles têm em comum. E assim nos são empurradas ilusões: de um lado, que trata-se de uma escolha entre “cidadãos de bem” ou bandidos corruptores de valores cristãos; de outro, que a batalha é entre quem quer o povo feliz e emancipado contra quem deseja exterminá-lo. Além de serem maneiras estreitas de enxergar a realidade, ignoram, por exemplo, que tanto um quanto outro já se mostraram calejados na cooptação espúria de apoio por meio de aparelhamento estatal e outros expedientes.

Será que somos mesmo incapazes de um diálogo maduro, de separar o que é fato e o que é versão e de notar a obviedade de que, entre o branco e o preto, existem inúmeras gradações de cinza? Essa superficialidade só interessa a um sistema que persegue incessantemente a própria sobrevivência e manutenção de privilégios e não distingue bandeiras ideológicas, por mais que queiramos acreditar que sim. E o pior: é esse ambiente de distorções que faz aumentar perigosamente a tolerância a retóricas de violência – o que parece contaminar até vozes historicamente ponderadas, como mostra o caso recente envolvendo o vereador Alberto Heck.

É triste que tenhamos nos deixado levar por essa engrenagem criminosa. Angustia-me a perspectiva de que, recém-saídos de um dos momentos mais dramáticos de nossa trajetória enquanto civilização, com a pandemia, teremos um pleito norteado por simplificações e ideias tacanhas do tipo “ameaça comunista” e “genocídio”. Também é triste ver tantas pessoas esclarecidas se permitirem seduzir por fake news, fajutas teorias conspiratórias e sentimentos construídos de desconfiança sobre as instituições, que só corroem a qualidade de nossa democracia e asseguram a perpetuação de velhas práticas, ainda que invariavelmente sob o manto falso do antissistema.

Publicidade

Está muito claro que essas forças buscam a todo custo o confronto entre si, o que nos impõe uma encruzilhada, afinal, ingrata. Independentemente de quem vença, a população continuará cindida e o caos seguirá instalado. Ao menos enquanto insistirmos em fazer papel de palhaços.

LEIA MAIS COLUNAS DE PEDRO GARCIA

Publicidade

Aviso de cookies

Nós utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdos de seu interesse. Para saber mais, consulte a nossa Política de Privacidade.