Quando George Orwell escreveu talvez sua obra mais celebrada, 1984 ainda era futuro. Não creio que o escritor quisesse, como não creio que queiram a maior parte dos autores de ficção científica, prever o que aconteceria nos anos seguintes. A literatura usa o futuro como metáfora, como espaço que permite exacerbar algo que o autor já vê na sociedade em que está inserido.
De todos os poderes do totalitário governo da nação retratada em “1984”, talvez o mais lembrado, quando se evoca o livro em debates sobre a sociedade contemporânea, seja a vigilância total exercida sobre a população.
E não é difícil encontrar essa referência nos dias atuais, em que estamos cercados, ainda que muitas vezes inadvertidamente, de câmeras e rastreadores de localização. No entanto, os propósitos me parecem diferentes: enquanto a força política autoritária da obra de Orwell busca controlar as ações dos cidadãos, as grandes corporações que nos vigiam hoje buscam coletar dados, com, principalmente, intenção comercial, para fins de direcionamento de publicidade ou mesmo de venda desses dados.
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Penso, então, que a característica mais atual da sociedade distópica de “1984” seja o controle da informação. O protagonista do livro trabalha como um historiador ou jornalista meio às avessas, alguém que altera registros do passado para confirmar a versão do governo sobre o presente – “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”, diz uma das passagens mais repetidas da obra.
Um otimista que visse a internet surgir, certamente pensaria que o acesso a informação permitido por ela tornaria o mundo um lugar mais inteligente e a metáfora de Orwell obsoleta. No entanto, não é isso que parece acontecer. Vemos o tempo todo a experiência, o estudo e a análise serem postos no mesmo saco da opinião rasa, da birra de criança mimada que quer acreditar em algo e quer que todos mais pensem igual. E vemos brotar, da internet, uma realidade que se encaixa em um conceito que eu achei absurdo quando soube que existia: o de pós-verdade. Nesse contexto, a convicção vale mais do que o fato: verdadeiro é tudo aquilo que se alinha com o que eu já penso; se eu discordo, é mentira. Por isso, as fake news proliferam com tanta facilidade e por isso tantas vezes trabalhos jornalísticos são tachados, de forma completamente equivocada, de fake news. E tudo sem necessidade de controle estatal da informação, bastando o direcionamento de ânimos.
A internet é uma ferramenta maravilhosa, mas as pessoas a transformaram no espaço onde a distopia orwelliana é mais possível, onde é mais viável inventar precedentes que confirmem uma narrativa mentirosa sobre o presente, onde é mais fácil criar uma versão – ainda que com base em nada além de crença – e repeti-la, até que alguém acabe por se convencer de que, dados os tantos argumentos – mesmo que repetidamente infundados –, 2 + 2 pode mesmo resultar em 5.
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