O Brasil perdeu uma das grandes damas de sua literatura no último sábado, dia 17, quando a escritora carioca Nélida Piñon faleceu, aos 85 anos. Foi mais uma autora referencial a se despedir neste ano, quando já se lamentara a morte da paulista Lygia Fagundes Telles, em abril. Uma das vozes brasileiras de maior projeção no exterior, Nélida mantinha fortes relações com vários países, em especial da Europa, caso da Espanha, da qual sua família era originária (da região da Galícia), e também com os Estados Unidos, onde lecionou em universidades. Ela viajava com frequência, e morreu em Lisboa, de onde seu corpo deve ser transladado ao Rio de Janeiro ao longo da próxima semana, para sepultamento nessa cidade.
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Entre inúmeras ações de vulto no ambiente da literatura e da cultura no Brasil, Nélida foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL) em toda a história centenária da entidade, tendo sido eleita em 1989. Como romancista, ensaísta e memorialista, foi autora de 25 livros, pelos quais foi premiada e distinguida em diversas ocasiões. Sua obra é uma das mais traduzidas entre autores nacionais, à altura de Jorge Amado e de Paulo Coelho, o que só reafirma o seu trânsito junto a escritores expoentes do mundo todo.
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Pelo conjunto da sua literatura, Nélida recebeu, entre outros, o Prêmio Camões, o mais importante para autores de língua portuguesa em todas as nações que praticam essa língua, e ainda do Prêmio Princesa das Astúrias, importante distinção a escritores concedido pela Espanha.
Entre seus livros mais conhecidos estão o monumental romance A república dos sonhos, de 1984. Não chegava a publicar com tanta frequência, sendo reconhecida pela preocupação em lapidar seus textos. Vozes do deserto, de 2004, e Um dia chegarei a Sagres, de 2020, são suas narrativas de ficção mais recentes.
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Desde 2009 também se voltara à memória, e nesse gênero encantara seus leitores com Coração andarilho, daquele ano; O livro das horas, de 2012; e Uma lágrima furtiva, de 2019. Contos, crônicas e ensaios completam sua bibliografia.
Uma das marcas pessoais de Nélida era seu engajamento social. Ela jamais se furtava a opinar e a demarcar posicionamento público, isso já desde os governos do regime militar, nos aos de 1960 a 1980. Era contumaz defensora da importância dos investimentos em educação, e isso enfatizara em entrevista que concedeu por telefone à Gazeta do Sul, em 2014 (confira ao lado). Ali também expressara que o Brasil precisaria resgatar com urgência a credibilidade de suas instituições públicas, recado que soa mais atual e urgente do que nunca.
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No final de 2014, a escritora Nélida Piñon concedera entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por telefone, a partir de seu apartamento no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro. Num momento de amplas manifestações públicas no País, frisou que só conseguia vislumbrar saída para o Brasil através da educação. Confira algumas questões abordadas por Nélida naquela entrevista. Relembre a conversa:
Eu não sei como desenvolver um país se não através do melhor processo, mais exaustivo, que é investir na educação. Não há educação no Brasil. A educação aqui é precária, ela se esfarela. A superfície brilha um pouquinho, você põe o dedo nessa superfície e acha que ela resiste. Mas o dedo quebra a superfície, é como uma camadinha leve de gelo. Você pensa que pode passar com seu trenó, e você afunda. É uma educação muito lamentável. Veja o exemplo dos nossos políticos: são as pessoas que falam em público, que pensam que estão pensando em público. O pensamento é muito insuficiente, fica sempre na periferia. O Brasil precisa desesperadamente se educar para poder galgar uma posição universal. Não é a economia que vai nos salvar, como pensam, com esses números que a gente não sabe se são verdadeiros ou não. É a educação que vai consolidar nossa economia. Porque aquilo que somos existe; acho que é um espírito muito original, singular, o ques temos. Mas como traduzir o espírito se nos faltam as ferramentas.
Não adianta querer traduzir a importância da leitura para a pessoa que não lê, o que a leitura fará em sua vida e na vida da Nação, porque para ela é uma abstração. Ela não vai entender nada, não vai acreditar no que estou dizendo. Vai imaginar que sou uma ave rara, que quer convencê-lo de alguma coisa que para ele não tem uso. Isso só será possível se implantarmos no inconsciente do brasileiro os primeiros grãos da leitura, do diálogo com os mestres, para que ele possa ver que cada vez que lê alguma coisa, escuta alguma coisa de alguém que vai lhe agregar elemento novo a sua imaginação, ele está crescendo, já não é o menino bobinho, a menina bobinha de antes. Passa a ser um ser mais astuto, não no sentido imoral, mas da astúcia humana, de entender a complexidade humana.
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Há uma descrença profunda nas instituições brasileiras, e isso me parece perigosíssimo. É difícil um brasileiro proclamar ufano “acredito no Brasil das instituições, acredito que o poder público batalha para oferecer a mim, aos meus filhos, os brasileiros, o que nós merecemos, e o que nós precisamos para crescer”. Não vejo isso. Pelo contrário. Vejo uma descrença profunda. Brasília é o oásis da incompetência, da corrupção. É um castelo que tem aquela ponte levadiça, só que ela nunca baixa. Isso é democracia? São democracia os acordos espúrios que se fazem? Não têm a mínima consideração pelo pensamento nacional, pelos incômodos que nos provocam. Fico horrorizada com tudo isso. Você pode confiar nas chefias do Legislativo ou do Executivo? É impressionante a imoralidade aplaudida, a corrupção aceita, o nepotismo como fato natural, os destroços que soçobram da coisa pública, da res publica, da república. E que democracia é essa em que os políticos têm imunidade total, não são punidos, estão fora do alcance da lei? Às vezes a gente pensa, talvez com razão, que a deseducação é um projeto do poder maior, que espera de coração que sejamos seres ingênuos, o tempo todo, para que possam continuar contaminando o País.
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