Acreditar. Foi assim, acreditando que seria possível, que Arilson Jesus, 26 anos, integra a lista de dez brasileiros selecionados em processo seletivo para participar de uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU). O Programa de Bolsas Indígenas de Língua Portuguesa 2023 da ONU tem o objetivo de ampliar o conhecimento dos povos originários e quilombolas sobre os principais mecanismos relacionados a Direitos Humanos.
Em Brasília, no Distrito Federal, ao longo das duas últimas semanas, o jovem natural de Lagoão, na região Centro Serra do Rio Grande do Sul, participou de atividades promovidas pela ONU e instituições parceiras, sendo esta uma etapa de treinamento, preparatória ao período de um mês em que estarão em Genebra, na Suíça, na Sede do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
O objetivo do programa é oportunizar a aquisição de conhecimento sobre o sistema das Nações Unidas e os mecanismos que tratam de questões de direitos humanos em geral e questões indígenas e quilombolas em particular. Através desta formação, os participantes estarão mais bem preparados para ajudar suas organizações e comunidades a proteger e promover seus direitos.
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Arilson da Rosa Jesus nasceu e passou sua infância na Serra Geral do Rio Pardo, interior de Lagoão. “Foi uma infância difícil no sentido de que tínhamos que ajudar desde cedo nossos pais na lavoura e o acesso à escola era mais complicado, também não tínhamos energia elétrica até 2006, nem água encanada, mas tivemos uma infância feliz, longe de perigos e próximos da natureza”.
Arilson só saiu da localidade quando, em busca de novas e melhores oportunidades, em 2010, a família se mudou para Boqueirão do Leão e, na sequência, para Lajeado, no Vale do Taquari, junto com alguns parentes. “Quando saímos do interior de Lagoão, fomos para a cidade praticamente sem nada. Tudo o que tínhamos era uma junta de bois e materiais para trabalhar na lavoura. Fomos ter nossa primeira casa de material, através do Minha Casa Minha Vida, em 2014, em Lajeado. Mas, sempre mantivemos contato com nossa família em Lagoão, onde, inclusive nas férias, ia para ajudar a colher fumo”.
Atuando como Jovem Aprendiz, ao concluir o Ensino Médio em 2014 e obter conhecimento das possibilidades disponíveis, o jovem passou a sonhar com o ingresso em um curso superior. Em sua terceira tentativa no Enem em 2015, não obteve a nota necessária. O ano seguinte foi de muito trabalho para juntar dinheiro. Já em 2016, trabalhando durante o dia e estudando em um cursinho pré-vestibular à noite, durante cinco meses, foi então que o jovem conquistou uma vaga no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com ingresso em 2017.
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Distante dos pais Rosalino dos Santos Jesus e Juviara Aparecida da Rosa e dos irmãos que ficaram em Lajeado, e também dos demais membros da família em Lagoão, Arilson aproveitou a oportunidade e passou a integrar iniciativas extracurriculares, entre as quais o NEABI/FURG, grupo de estudo, pesquisa e extensão étnico-raciais daquela Universidade, e a conhecer e se apropriar das políticas de ações afirmativas, passando, a partir dali, a impulsionar jovens da comunidade de Vila Miloca para que seguissem o caminho do ensino superior. “Quando meus pais eram pequenos tiveram que abdicar dos estudos para trabalhar. Meu pai sempre reforçou que não tinha muito para nos dar, mas que nos apoiaria se a gente quisesse estudar, que o estudo mudaria nossa vida. Quando eu entrei na Universidade foi um choque muito grande, porque às vezes não parecia que seria possível. Até eu tinha certa dificuldade em acreditar. Quando eu passei, senti que meu pai mudou de alguma forma. Foi a primeira vez que vi ele chorar. Parece que virou uma chave em nossa vida. Só que esse giro maior parece que ocorre quando da formatura. Na turma somente um aluno poderia receber o canudo de um familiar, e meus colegas me escolheram. Foi muito significativo e emocionante”.
O pensamento inicial do jovem era de cursar Medicina, para poder contribuir com a comunidade de Lagoão, ao visualizar a necessidade de mais profissionais da área no município. “Cresci com essa visão de que se fizesse Medicina conseguiria ajudar e ter uma maior atuação no meu município. Minha nota me possibilitou passar no curso de Direito. Ao ingressar, me apaixonei. O Direito me escolheu”, salienta.
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A tão aguardada colação de grau ocorreu em março de 2022. Do pai, sua grande inspiração, recebeu nas mãos o canudo e a simbologia da conquista em ser o primeiro da família e de sua comunidade a concluir uma graduação. “Na verdade é um processo muito solitário e até por isso um compromisso meu com a comunidade, de ser o primeiro. E um dos grandes problemas que a gente enfrenta é a necessidade de ter que sair de lá para ter acesso a oportunidades de estudo e às vezes até de trabalho. Então, sou o primeiro a formar, mas não o único, pois logo teremos mais”. A festa da formatura ainda não foi possível, assim como não houveram visitas da família ao longo do período em que esteve em Rio Grande. “Ainda não consegui comemorar com eles e a comunidade, porque não é uma realidade para nós. Mas penso que, assim que for possível, quero fazer algo para comemorar”.
Arilson, jovem sonhador, vem de uma família humilde, com pouco ou nenhum estudo, de trabalho duro na lavoura em busca do sustento. No entanto, o incentivo sempre esteve presente e a dedicação o tem feito chegar mais longe. “O fato de eu ter acessado a Universidade, a gente ter toda uma discussão sobre a questão racial, étnica, sobre o pertencimento, sobre a necessidade da gente pautar o nosso modo de viver em coletivo, a gente começa a perceber que essa lógica individualista de vencer sozinho na vida não faz sentido. Não faz sentido tu vencer se os teus continuam em uma lógica de precarização de direitos. Dentro da Universidade acabei fortalecendo ainda mais esse senso de coletividade e, já formado, ao retornar para a minha comunidade na condição de advogado, não só mais estudante, isso tem uma forte representatividade. Consegui perceber que eles viram que é possível”.
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Ainda em 2022, Arilson iniciou o mestrado em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual segue até 2024. Atualmente em Porto Alegre, o jovem também atua como advogado, tendo sido aprovado no exame da OAB antes da formatura. “Tive essa oportunidade e vou continuar, tanto quanto for possível, dando seguimento a essa busca por conhecimento, fundamental para conseguirmos fazer esse movimento de transformação e conseguir dar uma certa esperança para a comunidade”.
Ter essa oportunidade de participar de uma iniciativa ligada à ONU, sendo o único representante do Sul do Brasil, é muito especial. “Essa é a primeira edição deste programa para quilombolas. É uma importante formação para se discutir mecanismos de proteção a estes grupos sociais (indígenas e quilombolas). Está sendo uma experiência incrível, de muito conhecimento”, detalha Arilson, que pela primeira vez embarca em uma viagem para o exterior.
Conforme o presidente da Comunidade Quilombola Vila Miloca e primeiro vereador quilombola de Lagoão, Julio Gonçalves dos Santos, para os membros é motivo de orgulho a realização de Arilson. “Pra gente é um motivo de orgulho. Ele se criou junto conosco no interior. Onde moravam era mais perto do rio, um local de difícil acesso. Ele foi em busca de seus objetivos. Somos de uma família pobre, as coisas muito difíceis. Ele é bisneto de Emilio Gonçalves dos Santos (apelido de Miloca), meu pai, que deu origem à comunidade, que segue com seus descendentes”, salienta Julio, que é tio-avô de Arilson.
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O Certificado de Comunidade Quilombola fornecido pela Fundação Cultural Palmares foi entregue oficialmente em 2017. O processo de certificação da Comunidade Vila Miloca envolve mais de 60 famílias residentes no município de Lagoão.
Trecho de agradecimento de Arilson quando da formatura no curso de Direito:
“Receber o canudo de meu pai me fez sentir a presença de todas as gerações de homens e mulheres pretos/pretas quilombolas, familiares, que anteriores e mesmo contemporâneos a mim não conseguiram ocupar este lugar e viver esta experiência. Lembro de arrepiar, sentir uma forte pressão na cabeça e logo após um aperto no coração e então um alívio com o abraço de meu pai e com os olhos dele marejados e com uma expressão inenarrável eu consegui perceber que a primeira grande missão confiada a mim estava completa. Só consegui sentir gratidão e ter certeza de que estou no caminho certo. Preciso ser agente de transformação, abrir portas, abrir caminhos e estar presente para o meu povo, para o meu país e para todas aquelas pessoas que acreditam em um mundo melhor e mais justo.”
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