Era 28 de fevereiro de 2020, um dia quente, de mormaço, mas bonito em Santa Cruz do Sul. No armazém de Pedro Della Bona, na Rua Pita Pinheiro, Bairro Faxinal Menino Deus, a proximidade do fim de semana levantava o ânimo em meio ao marasmo da sexta-feira. Por volta das 15h45, apenas um cliente tomava uma Coca-Cola, em uma das mesas dispostas no espaço.
Atrás do balcão, seu Pedro, de 76 anos, organizava suas contas em um caderno quando dois jovens entraram no armazém. Engrossando a voz, um deles exigiu dinheiro. O dono do armazém levantou-se da cadeira e percebeu que os dois sujeitos portavam armas. “Tu tá brincando comigo, né?”, disse ele a um dos rapazes. Em resposta, o ladrão apontou seu revólver calibre 22 contra o comerciante e disparou à queima-roupa, atingindo a cabeça de Della Bona, junto ao olho esquerdo. O dono do armazém foi arremessado ao chão pelo tiro, enquanto os dois assaltantes saíram em disparada, sem levar absolutamente nada. Não sem antes ameaçar o cliente solitário: “Tu não viu nada.”
Juntando as forças que lhe restavam, Pedro Della Bona cambaleou até a porta de entrada do armazém, onde sentou no degrau, coberto de sangue. Foi quando os vizinhos o viram, e correram para ajudar. “Apesar do susto, eu estava lúcido. Lembro que foi um tumulto. Os vizinhos vieram e logo meu filho Joel chegou e me levou ao hospital.”
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Após uma sequência de exames e procedimentos médicos nos dias em que ficou internado no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital Ana Nery, seu Pedro e os familiares receberam a notícia de que ele estava fora de perigo. Passados pouco mais de três meses do episódio, o comerciante recebeu a Gazeta do Sul em seu armazém. Com a memória afiada, contou detalhes sobre o fatídico dia 28 de fevereiro e como está se recuperando do assalto que quase lhe tirou a vida.
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Della Bona veio para Santa Cruz do Sul em dezembro de 1981. Seus avós maternos e paternos vieram da Itália e os pais fixaram residência em Putinga. “Depois, fomos morar na cidade vizinha, Arvorezinha, e abrimos um mercadinho por lá. Aí, quem intermediou o negócio para eu comprar essa morada aqui no Faxinal foi o seu Ito, da Sorveteria Castelinho”, relatou Pedro. Ele veio com a esposa Adaíris e com as filhas Jusilei e Ádeler, de 15 anos e 9 anos. O filho Joel viria a nascer em Santa Cruz.
“Começamos a lida. Era uma época muito boa, de tirar o chapéu. Não dá nem para comparar com agora, pois tinha muito mais movimento.” O trabalho no armazém ajudou no estudo dos filhos. “As meninas começaram a estudar e trabalhar fora e ficamos nós aqui, tocando o barco”, relembrou seu Pedro.
Dona Adaíris acabou falecendo em 1o de janeiro de 2011, aos 66 anos, após uma infecção e falência dos órgãos. “Ela era muito trabalhadora. Pontual, correta e ajudava em tudo, pau-ferro mesmo”, contou o viúvo. “Foram quase 50 anos juntos, foi um tempo muito bom.” Ele ainda lembrou a fama de brava de dona Adaíris. “Ela falava alto e era muito honesta e sincera. Se ela tinha alguma coisa pra te dizer, dizia na cara e na hora, não falava por trás.” Mal sabia Pedro que a partida de dona Adaíris, em 2011, não seria sua última provação.
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“O ASSALTANTE ERA MEU CONHECIDO”
O mês de março seria de recuperação e descanso para seu Pedro na casa da filha Jusilei. As lembranças do assalto, no entanto, não saíam da sua cabeça. “Lembro que, quando aconteceu, olhei para os dois bandidos. Eles estavam de cara limpa, sem touca ou capuz. Eram jovens. Um eu não sabia quem era, mas o outro, que atirou, era daqui do bairro. Eu comprava vassouras dele. Ele pedia para ir ao banheiro, tinha toda a liberdade. Por isso, cheguei a perguntar se ele estava brincando, pois era meu conhecido”, comentou.
Embora Pedro mantivesse a esperança de que voltaria a enxergar por completo, a perda da visão do olho esquerdo foi confirmada um mês após o incidente. “O nosso oftalmologista pediu um tempo para contar. No íntimo, o pai sabia, mas tinha alguma esperança. Então, uns 30 dias depois o médico contou que não tinha como salvar o olho esquerdo”, disse a filha Jusilei. A bala de revólver calibre 22 que entrou no olho de Della Bona segue alojada em seu rosto. O fato não fez ele recuar. Logo nos dias seguintes, segundo a filha, o pai já acordava disposto, sempre antes das 5 horas. Mesmo com as portas do armazém fechadas, ela o levava de vez em quando para aguar as plantas ou mesmo para pintar o prédio.
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A possibilidade de parar de trabalhar, até então cogitada pelos filhos, foi rechaçada pelo pai. “Pensamos que estava na hora de ele viver, aproveitar a vida um pouco, já que só trabalhou. Mas percebemos que, se o forçássemos a parar, a gente ia fazer o que o bandido não conseguiu, que era matar o pai. Afinal, isso aqui é a vida dele. Foi aí que surgiu a decisão de eu sair do trabalho para estar com ele aqui no armazém”, comentou a filha Jusilei.
Com essa decisão, vieram outras. Uma segurança maior seria necessária. Para tanto, foram instaladas câmeras e portas automáticas. “Eu não queria, mas foi necessário fazer essas adaptações. Eu nunca imaginei parar. Tenho gosto por isso aqui e uma boa clientela, fregueses de primeira linha. Sempre pensei em tocar o barco de novo”, ressalta o dono do estabelecimento.
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Ação rápida garantiu a captura dos bandidos
Tão logo ocorreu o assalto, as forças policiais iniciaram uma verdadeira forçatarefa na busca aos assaltantes. No mesmo dia, a Força Tática da Brigada Militar identificou o suspeito de ter efetuado o disparo e repassou as informações à Polícia Civil, o que colaborou para o rápido esclarecimento do caso.
O adolescente, na época com 16 anos (hoje com 17), foi apreendido pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e encaminhado à Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), onde segue detido. O segundo assaltante, de 18 anos, foi preso no dia 19 de março, também em ação da Draco.
Ele segue recolhido no Presídio Regional de Santa Cruz do Sul. “Este caso foi apurado por meio de um inquérito policial referente ao adulto e um procedimento especial quanto ao adolescente. Ambos os procedimentos foram logo encaminhados ao Poder Judiciário”, relembrou o delegado Marcelo Chiara Teixeira. Seu Pedro reconhece a ação efetiva. “O trabalho deles foi excelente, tiro e queda. Uma resposta efetiva e muito rápida”, comentou.
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Esperança de um futuro mais tranquilo
Antes do assalto de fevereiro deste ano, outras duas vezes o armazém já havia sido alvo de bandidos. Uma em dezembro de 2005 e outra em maio de 2008. Na primeira, à noite, quando seu Pedro já se preparava para fechar as portas, dois assaltantes armados renderam o dono do estabelecimento e um cliente e levaram o dinheiro do caixa. “A segunda foi em um dia de garoa e frio, na entrada do inverno. Por volta das 17 horas, o assaltante chegou e só estava um cliente meu, já falecido, o Irineu Overbeck. O ladrão pegou o dinheiro e nunca mais o vimos”, complementou.
“De 1981 até 2005 não tive nenhuma situação dessas. Podia ficar aberto até 22 horas e ninguém te incomodava. É um tempo que não volta mais. Depois piorou. A cidade cresceu e, com isso, veio esse lado ruim, dos crimes”, finalizou seu Pedro. Das boas coisas do mundo atual, ele ressalta a tecnologia. Com a clientela, mantém contato diário pelo grupo no WhatsApp. “Eu não sou de postar muita coisa, só olho e apago, porque essa turma é demais.” Prestes a completar 77 anos no próximo dia 18, seu Pedro chegará a 40 anos à frente de seu armazém em dezembro do ano que vem.
Das lições que tira do último assalto, ressalta que todo cuidado é pouco. “Nunca pensamos que as coisas podem acontecer com a gente, mas temos que ter a consciência de que precisamos nos cuidar.” Mesmo após uma vida de trabalho, e diante de percalços, como assaltos, a perda da esposa e da visão de um dos olhos, ele garante que seguirá tocando seu armazém, sem tirar o sorriso do rosto. “Não tenho outra profissão, só essa mesmo. Nasci de novo. A idade vem vindo, mas, enquanto eu tiver saúde, vamos seguir. De agora em diante, tenho esperança de que vai ser mais tranquilo.”
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