No universo dos estudos históricos sobre a presença e as contribuições dos alemães e de seus descendentes no Sul do Brasil, o nome do historiador e professor aposentado René Ernaini Gertz é uma unanimidade. E isso que ele dedicou, ao longo de sua trajetória, olhar sobre aspectos e elementos que, de imediato, são sensíveis ou passíveis de alimentar alguma polêmica. É o caso do que se convencionou nomear de “perigo alemão”, bem como das manifestações nazistas ou neonazistas, entre outros temas. A tudo ele abordou com amplo espírito crítico e sempre com originalidade.
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Aos 74 anos, é natural de Novo Machado, que, na época em que nasceu (1949), pertencia a Santa Rosa, no Noroeste gaúcho. Jovem, ingressou no Instituto Pré-Teológico de São Leopoldo, pois seu plano era ser pastor. Mas se transferiu para o curso de História na Unisinos, seguindo com o mestrado em Ciência Política na Ufrgs e o doutorado na Universidade Livre de Berlim.
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Como professor, atuou em colégios e teve passagem pela Unijuí, até chegar à PUCRS e, por fim, à Ufrgs. Ali, contribuiu para a formação de gerações de pesquisadores, inclusive com seus inúmeros livros publicados. Em suas relações com Santa Cruz do Sul, menciona o contato e a parceria com professores e pesquisadores locais, entre os quais faz questão de referir o nome do professor aposentado Olgário Vogt. Na entrevista, reflete sobre diversos temas associados à iminência dos 200 anos de imigração alemã no Sul do Brasil, a serem comemorados em 2024.
Entrevista – René Ernaini Gertz, professor e historiador
- Gazeta do Sul – Em que momento, e a partir de que circunstâncias, o senhor passou a se dedicar à pesquisa relacionada à colonização ou à presença alemã no Sul do Brasil? O que motivou ou desencadeou esse interesse de estudo? Quando terminei o curso de História na Unisinos, em 1974, precisei fazer um Trabalho de Conclusão de Curso, que foi sobre a Revolução de 1930 em São Leopoldo. Ele mostrou que muito daquilo que se dizia da “colônia alemã” não era bem assim, em especial a ladainha sobre total desconhecimento e desinteresse político pelo Brasil. Em 1975, ingressei no mestrado em Ciência Política na Ufrgs, e ali fiz uma dissertação sobre germanismo, nazismo e integralismo, estudo que aprofundou minha convicção de que o senso comum e mesmo trabalhos acadêmicos não estavam corretos em sua avaliação sobre alemães e descendentes.
- O senhor menciona, em O perigo alemão, a questão dos estereótipos ou dos preconceitos de que os próprios imigrantes alemães ou seus descendentes foram alvos. Quais as implicações disso e em que situações ou comunidades isso foi mais problemático ou traumático? Desde o começo da colonização alemã se apontava para um suposto “perigo alemão”, na pior das hipóteses significando que a população dela derivada poderia participar de tentativas de anexação do sul do Brasil à Alemanha. Até a Primeira Guerra Mundial, tivemos alguns incidentes, mas atos de violência mais generalizados não foram frequentes. Isso mudou nos períodos desta guerra e da segunda. Depois disso, manifestações preconceituosas, com outros enfoques, continuam, mas sem efeitos comparáveis aos dos tempos de guerra.
- O senhor dedicou obras ao neonazismo e ao fascismo no Sul do Brasil. Quais as principais implicações desses dois movimentos, onde eles mais emergiram e o que estimulou, ou ainda estimula, tais grupos? Para dar uma resposta bem clara, sou muito cético em relação às referências, em “redes sociais” e numa imprensa irresponsável, de que Santa Catarina está abarrotada de “neonazistas” de origem alemã, vindo o Rio Grande do Sul logo depois. Um primeiro problema é que essas afirmações vêm, basicamente, de uma única fonte, que incorreu em graves contradições. E quando realmente há manifestações e atos “neonazistas” nesses estados, é interessante observar que não é fácil provar que “alemães” sejam os maiores responsáveis. Há muito brasileiro “verdadeiro” metido nisso.
- A imigração alemã deu novas feições e propiciou um novo ambiente cultural e social em especial ao Rio Grande do Sul, mas também em outras regiões do Brasil. Que contribuições o senhor entende que são mais evidentes ou mais latentes, trazidas pelos alemães? Meus estudos se dedicam, sobretudo, ao campo político, e aí penso ter descoberto uma coisa interessante. A configuração inicial relativamente democrática das colônias, isto é, que todos começaram mais ou menos iguais, digamos com 25 hectares de terra, fez com que uma prática sociopolítica relativamente igualitária se estabelecesse ali. Não se entenda mal essa afirmação: eles não permaneceram iguais para o restante da história, uns ficaram parados ou até regrediram, outros dispararam. Mesmo assim, muitos municípios de colonização alemã do Rio Grande do Sul apresentam, hoje, bons índices de responsabilidade fiscal, social e de gestão. Isso significa que, ali, as administrações públicas atendem, com os recursos disponíveis, aos interesses da população, de forma relativamente eficiente e equitativa. Durante a primeira década deste século, São José do Hortêncio, no Vale do Rio Caí, sustentou o título de “campeão” nacional nessa linha, motivo pelo qual o classifiquei como município mais “socialista” do Brasil. E o interessante é que esses municípios não são administrados, necessariamente, por governos de esquerda. Isso relativiza a importância de “ideologias” e valoriza “condutas de vida”. Eduardo Relly publicou, recentemente, um livro que originalmente foi uma dissertação de mestrado na Univates, em Lajeado, o qual, sob outra perspectiva, aborda esse mesmo tema. Cabe destacar, ainda, que as primeiras mulheres prefeitas gaúchas foram eleitas em municípios de colonização alemã – Iris Ranck, 1982, em Cruzeiro do Sul, depois Marlene Wingert, 1988, em Sapiranga. Não se pode esquecer, também, que a primeira prefeita negra do Rio Grande do Sul, Tânia Terezinha da Silva, foi eleita numa “colônia alemã” tipicíssima, Dois Irmãos, em 2012, reeleita em 2016. E essa presença feminina nas prefeituras continua marcante, em municípios de colonização alemã.
- O sentimento de “perigo alemão”, como o senhor o refere, associado à presença de imigrantes e descendentes, em que ele estava implicado? Surge em função do contexto das duas grandes guerras, na Europa, ou há outros motivadores ou elementos a ele associados? As duas guerras deram força a preconceitos pré-existentes. Mas os motivos da existência deles são vários. Não tenho dúvida de que a tradição “latina” do Brasil tem a ver com isso. A cultura alemã é bastante diferente, daí um certo estranhamento compreensível. Além disso, a influência cultural francesa na história brasileira do século 19 e da primeira metade do 20 foi massacrante. Em função da tradicional rivalidade entre França e Alemanha, é compreensível que alemães e descendentes daqui tenham sido vistos com desconfiança. Claro, esse é apenas um fator, mas penso que não seja insignificante.
- E é um “sentimento”, por assim dizer, que se pode dizer superado, ao longo das décadas seguintes do século 20, ou ele ainda persiste de alguma forma ou se reaviva eventualmente? Isso é algo cíclico, no mínimo variável. No tempo de Juscelino Kubitschek, apesar da proximidade do final da guerra, com as “feridas” ainda bem presentes na memória, tal sentimento passou por uma regressão. A Alemanha impressionava o mundo com seu “milagre econômico”, era uma muralha contra o comunismo, fornecia capital ao Brasil. Nessa época, você podia chamar um carro de DKW (De-Ka-Vê) – se dissesse “De-Ka-Dáblio”, as pessoas teriam olhado para você, pensando que estava “variando”. Hoje, se você diz Be-Ém-Vê, para BMW – e não “Be-Eme-Dáblio” –, corre o sério risco de alguém chamar a polícia, para te prender como perigoso “neonazista”.
- O senhor entende que a sociedade brasileira como um todo, inclusive por maior reconhecimento e maior presença junto às grandes mídias, valoriza devidamente as contribuições trazidas por alemães? Não tenho estudos nem opinião formada sobre isso, mas, num congresso em Minas Gerais, anos atrás, perguntei aos presentes se podiam imaginar uma novela da Globo cujos personagens principais fossem “alemães”, não caricaturados. Ninguém se arriscou a dizer que sim!
- Na iminência das comemorações alusivas aos 200 anos desde a fixação das primeiras famílias alemãs na região da atual cidade de São Leopoldo, o senhor entende que seria um bom momento para, de forma ampla, reavaliar contribuições e implicações da presença social, cultural e econômica alemã no Rio Grande do Sul? O clima está pouco favorável. Convém tratar o assunto com discrição. Se repórteres das grandes empresas jornalísticas aparecerem por aqui, vão “enxergar” – e dar a maior divulgação – a cada “coisa”!
- Mesmo passados dois séculos, descendentes de alemães seguem transmitindo, como legado, em família, a língua e também outros hábitos e costumes. Essa marca germânica, com as diversas origens regionais na Europa, segue muito viva no Brasil, no entender do senhor? Não sou estudioso da área linguística. Como há bons estudiosos nessa linha, recomendo consultá-los a respeito.
- Os imigrantes e descendentes de alemães tiveram de lutar com uma série de obstáculos e limitações, a começar pela dificuldade da comunicação, em alemão, com falantes de português. O que mais se salienta entre esses entraves, e como foi esse processo de integração? Muito traumático? Não creio que a língua, tantas vezes referida, tenha sido um problema real. As “minorias” nas “colônias”, incluindo negros, normalmente falavam alemão. Podia haver dificuldades em alguma repartição pública estadual ou federal, em juízo, mas no cotidiano isso não era problema. A meu ver!
- O senhor também se dedicou a pesquisar a respeito de personagens importantes, como, por exemplo, Karl von Koseritz. Há muitos atores, entre conhecidos e anônimos, que mereciam ser iluminados? Sim, naquilo que tange ao Rio Grande do Sul, com Koseritz e outros começou a se desenhar uma presença alemã na política e na sociedade gaúchas. Mas aí veio o Júlio de Castilhos, implantou sua ditadura e acabou com o processo. Borges de Medeiros continuou no mesmo tranco, até 1930. Infelizmente, os efeitos da política castilhista perduram até hoje. Ainda não tivemos nenhum único governador titular de sobrenome alemão no Estado. Em termos de comparação, Santa Catarina já teve mais de dez, desde a proclamação da República. O sistema implantado por Castilhos “empurrou” as elites de origem alemã para instituições não políticas – “alemães” fundaram a Fiergs e sempre exerceram papel importante, ali; já ao Palácio Piratini nunca chegaram.
- Na condição de professor aposentado, o senhor entende que a universidade, hoje, contempla plenamente o tema da presença alemã no Brasil? O que o senhor gostaria de ver melhor trabalhado ou apreciado? Não creio que o estudo da história da imigração alemã seja pouco contemplado. Claro, na universidade se refletem as realidades presentes na sociedade, incluindo os preconceitos. Nesse sentido, eu vejo um problema nos frequentes casos de “autoflagelação”, e isso acontece, muitas vezes, em universidades localizadas nas mais típicas regiões de colonização alemã, onde professores e pesquisadores fazem questão de amaldiçoar a presença “alemã”.
- Mesmo afastado das lidas de sala de aula, o senhor ainda tem desenvolvido algumas pesquisas em suas áreas de interesse? Se sim, em quais? Expectativa de novas publicações? Ainda tenho projetos. Em 2020, publiquei um livro de memórias intelectuais-profissionais, chamado A trajetória de um professor-colono. Ultimamente, dedico muito tempo a estudar as asneiras ditas sobre “neonazismo” na “colônia alemã”. Mas meu interesse mais sério, neste momento, são situações do imediato pós-guerra. Publicou-se bastante sobre aquilo que aconteceu durante a guerra, mas há pouca coisa sobre o depois. Existe um livro recente sobre Siegfried Heuser, de Santa Cruz, e eu gostaria de escrever alguma coisa sobre Gleno Scherer, de Venâncio Aires, sobre Bruno Born, de Lajeado, por exemplo.
- Em uma reflexão pessoal, como foi a sua própria caminhada, como descendente de alemães, em termos de tomada de consciência sobre a riqueza cultural do universo de onde provinha? Na verdade, isso nunca foi uma preocupação minha. Estou muito mais preocupado com o que acontece na Ucrânia, de onde vieram meus quatro avós. Minha vinculação com a Alemanha sempre foi tênue. Estudei lá, falo perfeitamente a língua, leio em alemão os clássicos escritos em outras idiomas, mas só porque é a língua que melhor domino, além do português. Não tenho cidadania alemã, e não é verdade que tenho depositado, mensalmente, em minha conta bancária, grandes quantias em euros para “defender” os “alemães” – como um jornalista, em conversa comigo, sugeriu, candidamente, dia desses.
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