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FORA DE PAUTA

Não vou deixar

Uma das canções do álbum mais recente de Caetano Veloso é uma espécie de manifesto de resistência: “Não vou deixar você esculachar com a nossa história”. Diante desse interlocutor inominado que se pretende deter, Caetano invoca a trajetória do Brasil como algo que não pode ser destruído: “É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória”. Ele continua: “Não vou deixar que se desminta / A nossa gana, a nossa fama de bacana, o nosso drama, nossa pinta”. E volta a fincar pé: “Apesar de você dizer que acabou / Que o sonho não tem mais cor / Eu grito e repito: eu não vou!”.

Mais do que fulanizar o tal “você” (e não faltariam opções), o que me agrada na letra é o sentimento de proteção em relação a uma identidade, uma riqueza particular que não merece ser avacalhada. E o que tenho percebido é que essa riqueza não está presa a um passado remoto. Pelo contrário, o Brasil segue gerando coisas das quais podemos nos orgulhar.

Nos últimos meses, me deparei com uma incrível nova safra de escritores, todos altamente recomendáveis e que me encantaram pela qualidade dos seus textos. A começar pelo maravilhoso Torto arado, de Itamar Vieira Júnior – que, para mim, já é um clássico. Li também O avesso da pele, de Jeferson Tenório, e Tudo é rio, de Carla Madeira. Gostei em especial de Aline Bei e o seu O peso do pássaro morto, tão profundo e original, e do porto-alegrense José Falero e o impressionante e necessário Os supridores.

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Em matéria de cinema, também não faltam bons frutos. Na Mostra de São Paulo do ano passado, descobri por acaso A Felicidade das Coisas, primeiro longa-metragem de Thais Fujinaga – que, aliás, vai estrear no circuito comercial na semana que vem. De uma delicadeza ímpar e densidade disfarçada por uma premissa simples, o filme carrega a assinatura da produtora mineira Filmes de Plástico, que tem oferecido obras de excelente qualidade – se quiser conferir, assista a Temporada no Netflix. Recife é outro centro irradiador de bons filmes: o curta vencedor do Festival de Santa Cruz do ano passado, Inabitável, assinado por dois diretores jovens, é sublime. E esses são só exemplos.

Se for para falar de música, aí vamos longe: sou um amante incorrigível de música brasileira. Até confesso uma dificuldade em me atualizar nesse aspecto. Passo mais tempo explorando o universo infinito do samba e da MPB de décadas anteriores. Mas mesmo muito dos nossos decanos ainda estão, felizmente, ativos e produtivos. O melhor disco que escutei no ano passado foi Síntese do Lance, um feliz encontro dos geniais João Donato e Jards Macalé. Pouco antes da pandemia, assisti a um show de Milton Nascimento no qual apresentou as canções do inesquecível Clube da Esquina, esta semana eleito por especialistas o melhor álbum nacional de todos os tempos.

É bom lembrarmos sempre desses tesouros para sabermos que temos, sim, pelo que brigar. Vali-me da cultura das artes, pois é por meio dela que nos reconhecemos enquanto sociedade, mas existe mais, muito mais. Vivemos tempos estranhos, uma eleição complexa se aproxima e não faltará quem insista em rebaixar o nosso debate público – fabricando inimigos, propondo soluções rasteiras, ignorando contradições, desviando de tudo o que é realmente importante e corroendo sorrateiramente as nossas conquistas. E isso pode nos envergonhar, nos entristecer, nos desencantar. Mas não podemos, e não vamos, deixar.

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