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Não pise na linha

Dia desses, ao parar no semáforo, me deparei com uma cena inusitada. Algumas pessoas se preparavam para dar início à travessia na faixa de pedestres. No entanto, uma me chamou a atenção e fiquei a observá-la. Ela esperou alguns pedestres irem e quando estava praticamente sozinha, deu início a seu caminhar. Porém, milimétrica e cuidadosamente, pisava somente nas linhas brancas da faixa. Foi assim até o final da travessia, quando, com êxito, sem pisar na parte de asfalto, colocou o pé na calçada e sorriu. Um daqueles risos gostosos, que você também ri só de observar. Dentro do carro, também sorri e lembrei do quanto gostava dessa brincadeira quando criança.

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Um detalhe, não era uma criança que atravessava a faixa e sim uma senhora beirando os 50 ou mais. Em tão poucos minutos – não sei ao certo o tempo de uma sinaleira –, uma “chuva” de memórias tomou conta de mim. “Não vale pisar na linha”, era o comando para darmos início a uma competição saudável em forma de brincadeira. Ora com minha mãe, ora com amigos. Minha mãe tinha uma certa “desvantagem”, calçava número 39 e o pé muitas vezes não cabia nos quadrados pequenos da calçada. Era minha chance, vencer, ganhar da mãe! Lembrei das decepções quando, por descuido, pisava sem querer e perdia a tal competição.

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Ao observar a senhora, confesso que inicialmente pensei: “ela não tá fazendo isso”. Mas ao ver a satisfação dela, a alegria tão inocente de quem atingiu uma meta, refleti. Quando foi a última vez que brinquei de não pisar na linha? Por que parei? A adulta que me tornei não se permite vivenciar momentos “tolos” de infância? Ela simplesmente ignorou todas as questões e questionamentos que pudessem ser levantados a respeito de seu comportamento e aproveitou. Quantas vezes nos preocupamos com o que o outro vai pensar e agimos conforme rege o “manual da conduta social”, inventado por nós mesmos. Basta ler meu pensamento inicial, que a pré-julguei.

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Entre o certo (que aqui podemos exemplificar em simplesmente atravessar a faixa) e o ser feliz sem medo (pisando somente nas linhas brancas), ela foi ser feliz. Se divertiu, sem nem pensar que alguém a observava. Depois do episódio, lembrei de outros momentos, como andar sobre os pés do meu irmão, fazendo a volta pelos cômodos da casa; procurar trevo de quatro folhas; cantar uma música com tal palavra… Essa última, preciso dizer, faço até hoje. A reflexão aqui é quem somos de fato. Aqueles que se permitem ou aqueles que se tolhem? Espero, de coração, que pelo menos sejamos os que revezam ambos.

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A maternidade me permite tal alternância. Muitas vezes embarco na brincadeira proposta; em outras, sou a adulta que não brinca de nada. A fase agora é de legos, só que o guri tem uma criatividade em manejar as pecinhas que nem me arrisco. Esses dias tentei e ouvi: “Acho que não deu muito certo né, mãe!?”. Tem também a leitura do mesmo livro mais de uma vez. Algumas partes já decoradas, o que não me permite “burlar” e adiantar o serviço (risos). Às vezes, o cansaço me consome e não estou a fim, mas ele insiste. Então, respiro fundo, penso nas linhas brancas e lá vou eu ler pela enésima vez a história do Relâmpago MCQueen ou O Hipopótamo que adorava mastigar ou ainda Barbie e suas irmãs em uma aventura de cavalos.

Cansativo? Demais. Mas ao mesmo tempo sei que estamos criando memórias, até a bebê já fica quietinha para prestar atenção na história. São momentos que logo ali vamos recordar. Qualquer dia quero propor de não pisarmos nas linhas, para que eu possa ultrapassar o paradoxo de ser uma adulta e tão somente adulta.

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Guilherme Bica

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