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“Não há nenhuma motivação para ficar”, afirma empresária de Muçum após segunda enchente


Setenta e cinco dias. Esse é o período que separa os registros da primeira e da segunda maior enchente provocada pelo Rio Taquari. Nos municípios afetados, com ênfase em Muçum e Roca Sales, moradores dessas regiões convivem com o drama das chuvas e as incertezas relacionadas ao futuro.

Antes do desastre natural nos primeiros dias de setembro, a pacata cidade de Muçum mantinha sua rotina tranquila, com comércio, serviços de educação e saúde e trânsito em pleno funcionamento. Nas calçadas, as conversas tratavam de diversos assuntos: a previsão do tempo era um deles, como de praxe, sem maior preocupação por parte dos moradores. Mas no dia 5 de setembro deste ano o pior estava por acontecer.

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Em poucas horas, o Rio Taquari revelou a sua fúria, atingindo 29,62 metros de nível, e devastou cidades. Muçum e Roca Sales foram as mais afetadas. Seguidas por Encantado, Arroio do Meio, Lajeado, Estrela e Venâncio Aires, em Vila Mariante. As águas do rio destruíram casas, empresas, infraestrutura e, principalmente, levaram vidas. Naquela tragédia, 52 pessoas morreram, sendo 16 em Muçum e 13 em Roca Sales.

Neste ano, o Rio Grande do Sul está sob o efeito do fenômeno El Niño, que causa chuva em excesso. Em menos de três meses, as cidades foram mais uma vez atingidas pela cheia do Taquari. Em 18 de novembro, o nível do rio chegou a 28,94 metros. Desta vez, a água não foi tão violenta, mas desestabilizou a reconstrução das cidades, e levou pelo leito do rio o sonho e a força dos moradores, que imaginavam não ter de passar por isso novamente.

Cheias se repetem nas cidades do Vale do Taquari

Entre uma enchente e outra, foram menos de três meses desde a primeira inundação que devastou Muçum e Roca Sales. Em setembro, após o nível do rio ter baixado, a comunidade conseguiu visualizar os estragos e o que precisaria ser feito. Foram muitos os esforços humanitários de pessoas vindas de outras cidades da região, como Santa Cruz do Sul, para colaborar com a limpeza das cidades.

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Os governos estadual e federal, junto à Defesa Civil, mobilizaram equipes de resgate em busca de desaparecidos. O Exército Brasileiro, a Brigada Militar e o Corpo de Bombeiros também atuaram durante dias para colocar as localidades em ordem novamente e salvar vidas.

Pelos meios de comunicação e em vídeos nas redes sociais, foi possível entender a dimensão do desastre que mais parecia cenário de guerra, com casas destruídas, pontes levadas pela correnteza, carros revirados e árvores retorcidas. Desde então, a população busca alguma forma de se reerguer e tentar voltar à vida normal. 

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Antes de a segunda cheia acontecer, as cidades estavam restabelecendo o essencial, em um primeiro momento. Os supermercados reabriram, os alunos voltaram a ocupar as salas de aula e os moradores arrumavam suas casas. Serviços de saúde, como postos, hospitais e farmácias, também já estavam de portas abertas. A reconstrução almejada pelos munícipes estava acontecendo. 

75 dias depois

Na segunda quinzena de novembro, a quantidade expressiva de chuva que caía sobre o Vale do Taquari trouxe ares de preocupação aos moradores. No dia 18, o cenário caótico tomou conta novamente. As águas do Taquari invadiram as cidades do Vale. Muitos moradores de Muçum e Roca Sales perderam tudo outra vez, inclusive as doações arrecadadas após a primeira enchente. Desta vez, a força da água não foi considerada devastadora pela Defesa Civil, pois o nível do rio se elevou sem agito. Mas voltou a invadir ruas, casas e lojas. 

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A Gazeta do Sul foi conferir a situação na terça-feira. A primeira parada foi em Muçum, a 99 quilômetros de Santa Cruz. Na cidade, o colorido das flores e o verde da grama em canteiros e praças deu lugar à lama, que já estava seca. Nas ruas, poucas pessoas, cenário bem diferente do encontrado em setembro. A presença de carros era mínima, e os que circulavam levantavam a poeira da lama, que secou com o calor de 35 graus que fazia naquele dia. Nossa equipe conferiu que são diversos os prédios comerciais com placas de “Aluga-se” ou “Vende-se”; outros não receberam manutenção e estão com tapumes onde deveria haver uma vitrine. Muitas casas também se encontram nesta situação; os moradores deixaram seus lares e buscaram uma nova vida em algum outro local. 

Histórias e vidas levadas pela enxurrada

Os quase 5 mil moradores de Muçum viram um dos seus principais pontos históricos e turísticos ser arrancado pela força da água. A cidade, que leva o título de Princesa das Pontes, perdeu naquele 5 de setembro a estrutura da ponte rodoferroviária Brochado da Rocha, inaugurada em 1963 e com 289 metros de extensão. Ela passava sobre o Rio Taquari e conectava a cidade a Roca Sales, pela RS-129.

Vidas e histórias de pessoas também foram levadas rio abaixo. O Cemitério Público Municipal está destruído. Perto dali, no fim da Rua Barão do Rio Branco, encontramos a moradora ​​Lucilene Bonetti, 54 anos. Ela lavava algumas peças de roupas quando avistou a equipe da Gazeta. Receptiva, ela nos chamou e começou a conversar sobre a enchente. 

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Lucilene cuida de Lenite, de 87 anos, que teve a casa destruída
Casa de Lenite tinha 120 anos e foi levada pela enxurrada de 5 de setembro

Lucilene mora na cidade há 21 anos e atua como agente de saúde, no Bairro Fátima. Ela também cuida da aposentada Lenite Baldo Prudência, de 87 anos. Juntas, elas contam que viram a casa onde moravam ser levada pela força do rio.

“Em 120 anos, nunca veio água até a casa da Lenite. Nesta primeira vez, a água veio rápido demais. Erguemos o que podíamos e fomos para a minha casa, onde também nunca chegou a enchente. Lembro que eram quase 10 horas da noite, e tivemos que sair”, contou Lucilene. 

Para se proteger, elas e o marido de Luciane buscaram abrigo na parte alta da cidade, em residências de amigos. “Na manhã do outro dia, voltamos para ver como estava a situação. A gente não avistou o telhado da casa e pensamos que ainda estava encoberto pela água. Quando o nível do rio baixou, vimos que tudo havia sido arrancado. Não sobrou nada”, lamentou.

Ao lado de sua cuidadora e amiga, Lenite se emocionou ao relembrar da situação. “A água levou tudo o que eu tinha. Levou minha história, meus documentos e fotos de família”, disse, em meio às lágrimas.

A missão de dar a notícia

Devido à destruição da cidade, a comunicação também ficou escassa. Três dias após a primeira enxurrada, Lucilene Bonetti foi avisada por amigas que a irmã de Lenite Prudência era uma das vítimas fatais. “Minha missão foi contar que a irmã dela estava morta dentro de um caminhão frigorífico, em frente ao hospital.”

Lucilene disse que as duas se deslocaram até um posto de saúde onde, antes de comunicar a situação, ela recebeu apoio psicológico. “O marido da irmã dela sobreviveu, e contou que na noite da cheia a correnteza estava muito forte. Ele a estava segurando, mas a força da água foi maior e arrastou ela, que tinha 82 anos.” Abalada, a aposentada lamentou: “Eu não vi minha irmã ser enterrada”.

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Atualmente, as duas estão abrigadas em uma casa cedida por amigos de Lenite e vivem com as doações que recebem. Durante a segunda cheia, a água assustou novamente e entrou na casa, mas sem causar destruição. “Eles deixaram a gente ficar aqui. Queríamos alugar algo, mas não tem aluguel aqui em Muçum. Está tudo destruído”, ressaltou Lucilene.

A cuidadora destacou que, desta vez, a Defesa Civil alertou, horas antes, de que aconteceria uma segunda enchente. “Ficamos em dúvida sobre sair ou não. O prefeito [Mateus Trojan] disse que seria uma cheia maior que a última. Pegamos o que conseguimos e saímos de casa. Colocamos as coisas em uma carroça e fomos embora.” Questionadas sobre sua permanência na cidade, disseram que, por enquanto, o lugar delas é em Muçum. “Temos medo das próximas chuvas. A gente não dorme mais”, disse Lenite. Lucilene salientou que estão em busca de uma casa. “Nem que seja em outra cidade, mas aqui não dá para ficar, pois o rio se tornou um assassino. Não dá para viver com as incertezas.”

“A gente tem medo do que pode acontecer, novamente.”, relata empresária

Circulando pelas ruas de Muçum, encontramos a empresária Graciela Vendramini Pretto, 60 anos. Ela é dona de um mercado que foi destruído na primeira cheia, e estava reconstruindo o seu único meio de sustento.

“Eu iria reabrir o estabelecimento no dia 10 de dezembro. Recuperamos equipamentos e prateleiras. Passamos dias e noites trabalhando para colocar tudo em ordem. Até as paredes foram pintadas. Foi tudo destruído de novo. Depois dessa enchente, vou dar um jeito de vender o que sobrou e fechar o prédio”, contou.

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A casa de Graciela também foi danificada nas duas enchentes. Ela relatou que sua mãe, de 94 anos, já foi embora da cidade e seu irmão, também comerciante, fechou o supermercado. “Não há motivação para ficar aqui. A gente tem medo do que pode acontecer, novamente.”

A empresária contou que irá se mudar para Lajeado e trabalhar com seus filhos. “Em setembro, tivemos muita ajuda das pessoas, dos moradores. Agora não tem quase ninguém. Foram todos embora. A Prefeitura tem colaborado com o que pode.”

Ao ser questionada sobre uma perspectiva para o futuro, o silêncio e as lágrimas de Graciela tomaram conta. “É uma pena tudo isso! Minha vida era aqui. Fiz amigos e clientes. Mas não há condições de ficar, tenho que ser realista”, afirmou.

No Município, a Prefeitura estima que 35% das edificações foram danificadas, a maioria em definitivo, durante a primeira enxurrada. O levantamento de prejuízos chega a R$ 231 milhões. Os dados foram divulgados durante o lançamento do programa Recupera Muçum. Desta vez, 60% da cidade ficou debaixo d’água, que atingiu 6 metros de altura em alguns pontos.  

Em Roca Sales, muito trabalho para a reconstrução

A segunda parada da nossa equipe foi em Roca Sales, a 85 quilômetros do centro de Santa Cruz. A movimentação de pessoas e máquinas era maior na área central. A poeira também dividia espaço com os trabalhadores que refaziam a Avenida Daltro Filho, arrancada pela força das águas do Taquari, no dia 5 de setembro, e prejudicada novamente. 

Quem acompanhava a situação era o chefe de engenharia e membro da Defesa Civil do Município, Jonas Haefliger, 36 anos. Ele contou que o objetivo é reconstruir a via, já que ela faz a ligação da cidade entre um lado e outro. “Aguardamos desde a primeira enchente o recurso de R$ 9 milhões que será necessário para a reforma.”

Jonas, da Defesa Civil: cabeça erguida para a tarefa de reerguer a cidade

Haefliger frisou que o cenário atual é bem diferente do primeiro. “Estamos fazendo a limpeza das ruas, e o que se percebe é a falta de voluntários; não recebemos ninguém. Estamos de cabeça erguida para arrumar a cidade.”  

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O levantamento de danos realizado pelo Município aponta que 132 casas foram destruídas e 200 sofreram danos. “Quando o nível do rio começou a subir, de novo, alertamos a população para que saísse. Ela nos escutou, e isso evitou o pior”, ressaltou o membro da Defesa Civil.

Assim como em Muçum, Haefliger observou que a saída de moradores é uma realidade. “Quem passa por uma situação assim pensa duas vezes se vai retornar. Entendemos que foi uma catástrofe. No entanto, estamos com a campanha Unidos por Roca Sales, para reerguer a cidade. Temos grandes empresas aqui, que geram muitos empregos.”

A população atingida precisa de doações. Os itens principais são mantimentos, água e móveis. Podem ser entregues no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da cidade.

Em Roca Sales, a devastação maior é percebida na região central. Prédios e residências foram destruídos em setembro

El Niño terá o seu ápice no verão

O verão dos gaúchos será influenciado pelo fenômeno climático El Niño. A projeção é da meteorologista Estael Sias, da MetSul. “O El Niño está ganhando força e seu ápice deve ser entre dezembro e janeiro.”

As precipitações serão diferentes das registradas durante o inverno e a primavera. “Será uma chuva mais distribuída, o que para a agricultura é bom. No entanto, com os rios cheios, o risco de novas inundações e enchentes deve ser significativo, mas não com a mesma frequência de como ocorreu na primavera”, explicou a especialista.

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Quanto às temperaturas, Estael frisou que a tendência será para dias abafados. “É pouco provável que tenhamos ondas de calor como as registradas no centro do País, pois teremos chuva acima da média, com muita nebulosidade. Isso torna difícil uma sequência de temperaturas acima dos 35 graus.” Os gaúchos deverão ter dias com abafamento e desconforto causado pelo calor. “A combinação desses dois fatores estará acima da média, por causa do El Niño”, explicou. 

Medidas para as cidades

O vice-governador Gabriel Souza esteve na quarta-feira em Roca Sales e em Muçum, no Vale do Taquari, para se reunir com os prefeitos dos dois municípios, Amilton Fontana e Mateus Trojan, respectivamente. O objetivo foi entender as demandas emergenciais das cidades.
Em Roca Sales, serão construídas 20 casas de passagem para abrigar famílias que perderam suas moradias na enchente registrada em setembro.

A medida visa oferecer melhores condições para os moradores até que as casas definitivas estejam prontas. No terreno, já foram ligadas as redes de água e de energia elétrica. A expectativa do governo é entregar as residências em até 45 dias, após o início da obra.
Em Muçum, o vice-governador tratou de questões relacionadas à assistência social e à recuperação do município. No encontro, foi anunciado que, na próxima semana, Souza vai embarcar para uma missão internacional na China. O governo pretende tratar de questões do campo da habilitação de plantas frigoríficas – incluindo empresas da região do Vale do Taquari, como Dália e Languiru.

Confira mais imagens das cidades atingidas:

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