Pesquisar sobre a história em livros, revistas e fotografias, ou mesmo ouvir historiadores tratarem sobre o tema, é sempre uma estratégia válida para entender fatos históricos e como eles contribuíram para moldar a sociedade contemporânea. Poder ver de perto objetos que estiveram presentes durante esses acontecimentos, contudo, oferece uma experiência diferenciada, ao retirar as imagens do campo da imaginação e permitir que as pessoas, em alguns casos, possam até mesmo manusear os objetos.
É o que acontece com a imigração germânica no Rio Grande do Sul. Diversos são os conteúdos e as fontes disponíveis para quem deseja conhecer o tema a fundo, mas aqueles que preferem ver de perto os objetos podem visitar o Museu do Colégio Mauá. Na última quinta-feira, 7, a instituição inaugurou a mostra Legado dos Imigrantes Alemães, que reúne centenas de objetos pertencentes aos primeiros imigrantes ou a seus descendentes. A exposição ficará no local durante o ano de 2024 e pode ser conferida por toda a comunidade.
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Centenas de objetos estão expostos no Museu do Colégio Mauá e alguns possuem mais de 170 anos, remontando ao período da chegada dos primeiros imigrantes à recém-criada Colônia de Santa Cruz, em 1849. São móveis, ferramentas, utensílios domésticos, louças, livros, instrumentos musicais, vestimentas, pinturas, brinquedos e outros, todos devidamente catalogados com a época à qual pertenceram e quem foi a pessoa responsável por fazer a doação, além de uma breve introdução.
De acordo com a professora Maria Luiza Rauber Schuster, diretora da instituição, muitas vezes a expressão “peça de museu” é usada de forma pejorativa, e isso não pode ser aceito. “Não é qualquer coisa que nos serve. Se a peça está aqui, é uma relíquia de grande valor”, afirma. As que não chegam em bom estado de conservação passam por um trabalho de restauro antes de serem expostas e, até os dias de hoje, mesmo passado todo esse tempo, as doações ainda ocorrem. Algumas, totalmente inesperadas.
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O diretor do Colégio Mauá, Nestor Raschen, conta que há cerca de dois anos recebeu o contato do alemão Jonas Eberhardt, neto do pastor Armin Eberhardt, que atuou na região de Santa Cruz do Sul nas décadas de 1930 e 1940. “Ele comentou sobre materiais que o avô tinha levado do Brasil e estavam em sua casa, bem como o desejo de que eles voltassem ao Brasil.” Além de ter feito o envio, Eberhardt fez questão de pagar todos os impostos e as taxas para que a encomenda chegasse sem custos.
“Quando abri a caixa, havia uma grande quantidade de fotografias daquela época e uma carta manifestando a vontade de repatriar tudo aquilo”, revela Maria Luiza. As imagens, segundo ela, mostram que o pastor tinha grande interesse por fotos e registrou muitos locais. “Como o idioma alemão estava proibido naquela época, muitas fotos possuem no verso a referência de data e local feita parte em português e parte em alemão.”
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No pacote havia ainda duas coleções de cartões-postais desenhados à mão, com caneta nanquim, pelo artista Joseph Lutzenberger. Uma delas tratava sobre a vida do Musterreiter, o caixeiro viajante, e outra sobre Porto Alegre de “hontem”, a forma como se escrevia a palavra “ontem” até 1941. “Ao pesquisar sobre eles, fiquei surpresa ao descobrir que são verdadeiras relíquias”, conta Maria Luiza. Joseph é pai do agrônomo, escritor e ambientalista José Antonio Lutzenberger.
Com um número imensurável de peças ainda existentes nas residências de famílias de descendentes de imigrantes alemães, Maria Luiza ressalta a importância de que elas sejam doadas a museus para que sejam devidamente preservadas e possam ser vistas de perto pela população. “Olhando esses itens, nós entendemos como a humanidade é, a forma como a nossa cidade se organizou e quais foram os motivos para isso”, ressalta. Além disso, a doação previne que esses materiais sejam perdidos ou descartados.
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“É comum as pessoas deixarem artigos aqui e dizerem que, se não servir, podemos jogar no lixo. Mais de 90% do que chega até nós não é lixo e, muitas vezes, integra alguma coleção já existente no acervo”, comenta. O descarte só ocorre quando as condições são muito precárias e não há possibilidade de restauração. “São coisas que muitas vezes ficam escondidas nas casas e os proprietários não sabem se serão preservadas pelas próximas gerações da família. Então, optam por nos entregar.”
Entre dezenas de itens presentes na exposição Legado dos Imigrantes Alemães no Museu do Colégio Mauá, um deles logo salta aos olhos dos visitantes: o vestido de noiva preto. A professora Maria Luiza Rauber Schuster conta que, na Europa, uma das possíveis explicações remete ao período feudal, na região da Pomerânia, quando o senhor do feudo tinha direito à primeira noite com a esposa de seu vassalo. Com isso, as mulheres optavam por casar de preto, cor que simboliza o luto, e assim esperavam afastar a vontade do proprietário das terras.
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O costume, entretanto, chegou às colônias germânicas no Rio Grande do Sul e permaneceu até a década de 1920. Por aqui, explica, as razões eram de ordem econômica e logística, considerando a dificuldade e o alto custo de se obter tecidos coloridos. Por outro lado, o véu era branco, como nos dias atuais. Outras diferenças eram o corte e a costura. Tratava-se de um vestido muito mais simples, sem armações e camadas, e com costuras folgadas, para o caso de a mulher estar grávida. Após a cerimônia, o traje era usado ainda em encontros sociais, como quermesses, velórios e passeios.
As fotos também possuem uma peculiaridade: dificilmente eram feitas no dia do casamento. Isso porque não havia fotógrafos disponíveis como nos dias atuais. Os registros eram feitos quando o profissional passava pela localidade, o que podia ocorrer dias ou até mesmo semanas depois da cerimônia.
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Um dos itens mais antigos em exposição no Museu do Colégio Mauá é a primeira pedra tumular da Colônia de Santa Cruz. A lápide data de 8 de março de 1850 e foi feita para Wilhelm Haar, que tinha menos de 1 ano quando faleceu. Ele nasceu em 22 de março de 1849, em Lutzbeuren, no território da atual Alemanha, e teria vindo na terceira leva de imigrantes. Feita em pedra grês, como era tradicional na época, a peça foi encontrada em um potreiro em Linha Santa Cruz e doada ao museu. Enquanto catalogava as fotografias feitas pelo pastor Armin Eberhardt, Maria Luiza se deparou com uma fotografia da lápide, feita entre os anos de 1930 e 1940.
Era tradição nas famílias alemãs que pelo menos um dos integrantes tocasse algum instrumento musical, muitos dos quais trazidos da Europa pelos imigrantes. Os mais comuns eram a cítara e o violino, mas também foram trazidos o bandoneon e o acordeon. “Hoje, o bandoneon é muito famoso na Argentina em razão do tango, enquanto o acordeon se popularizou mais nas regiões de colonização italiana”, conta. Esse último também teve fundamental importância na consolidação da música gaúcha.
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Essa inspiração se estendeu também para a dança. As danças tradicionais atuais têm muitas semelhanças com ritmos germânicos, como a valsa, a polca e a dança de fitas. “A dança do pezinho igualmente teve grande influência de um ritmo açoriano”, completa. Além das escolas de música, os imigrantes e seus descendentes, depois de estabelecidos nas colônias, fundaram muitas sociedades de canto e orquestras, algumas delas de grande renome na região, como a Estudantina e a Jetibá.
Além das diferentes receitas, os imigrantes trouxeram consigo alguns utensílios domésticos usados na preparação das refeições, como formas, moedor de carne e o rolo com desenhos para fazer as bolachas spekulatius. “Vieram o bolo, que a mulher portuguesa já fazia, mas sem recheio; a cuca, os embutidos, que não eram feitos por aqui; e também as bolachas”, enfatiza Maria Luiza. Chama atenção ainda uma forma de ferro fundido usada para fazer waffles no fogão a lenha e que contém a lista de ingredientes gravada na parte superior, dispensando, assim, o livro de receitas.
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Há uma seção específica na exposição que trata sobre a religiosidade dos imigrantes alemães, onde podem ser conferidas bíblias antigas, lembranças de confirmações e até livros de orações. Um deles foi escrito à mão, em alemão gótico, pelo imigrante Ferdinand Helfer e foi trazido da região da Silésia, em 1854. A publicação impressiona não apenas pelo grande número de páginas, mas pela caligrafia precisa. “E isso foi escrito com caneta-tinteiro. Imagina o trabalho que esse homem teve e quanto tempo demorou”, observa a diretora. Apesar de praticamente perfeita, a escrita é de difícil interpretação mesmo para pessoas capacitadas e experientes.
O Museu do Colégio Mauá fica localizado no centro de Santa Cruz do Sul, na Rua Marechal Floriano, 274, em frente ao Palacinho da Praça da Bandeira. O local funciona de terça a sexta-feira, das 14 às 17 horas. Os ingressos custam R$ 5,00 para estudantes e aposentados e R$ 10,00 para o público geral. Em caso de visitas de grupos maiores ou excursões, a direção pede que seja feito um agendamento prévio, com o objetivo de garantir uma melhor organização e experiência para todos. O contato pode ser feito pelo telefone (51) 3715 0496.
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