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Muros de pedra no interior de Santa Cruz tornaram-se elo entre o passado e o presente

Eles são rudimentares, usados, na maioria das vezes, para controlar o fluxo de animais dentro das propriedades, desde os tempos em que poste de concreto e arame galvanizado ainda não existiam. Com mais de cem anos, os muros de pedra encontrados em várias localidades do interior de Santa Cruz do Sul tornaram-se elo entre um passado de dificuldades tecnológicas e o presente moderno. Seguem na paisagem, 171 anos após a chegada dos primeiros imigrantes alemães, em 19 de dezembro de 1849, data a lembrar neste sábado. São, hoje, obras que concedem beleza às propriedades. Contrariando até mesmo a função de um muro – que é de separar –, os muros de pedra ligam a vida contemporânea ao período da colonização. Com zelo, descendentes dos primeiros moradores da região preservam essas estruturas centenárias, que são motivos de orgulho para as gerações deste século 21.

Beleza que traz lembranças da infância
Em Quarta Linha Nova Alta, no interior de Santa Cruz do Sul, a agricultora Natália Maria Paulus, de 56 anos, lembra como se fosse ontem do tempo em que ela caminhava por cima das pedras do muro da propriedade da família. Natália explica que, quando o avô adquiriu as terras, há mais de 80 anos, o cercado que dividia o espaço com os demais vizinhos já estava de pé.

Seu Lindolfo Paulus, o pai de Natália, que morreu há 35 anos, ainda é uma lembrança viva para a agricultora. Basta ela sentar-se sobre as pedras do muro, ao lado do filho, Maiquel Paulus, e é como se ela viajasse no tempo. Nesses momentos, relembra do carinho do pai e sente o cheiro que o ar tinha naquela época. “Era muito divertido andar sobre as pedras do muro. A gente vinha lá de baixo caminhando sobre ele. É uma recordação muito bonita”, conta emocionada, ao recordar-se da infância.

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Natália casou-se e continuou morando na propriedade, que ela mantém com muito carinho e capricho. As terras da família têm 29 hectares, parte deles para o plantio de tabaco. “Na parte da lavoura não tem cercado. Era mais comum que ele fosse colocado como divisa das propriedades, ou para delimitar o espaço dos animais”, conta Maiquel, que, assim como a mãe, ama o lugar e preserva o legado do avô. “Este muro é parte da história, de tudo que ele fez por nós. É o que eu tenho de material da presença do avô que não conheci.”

Maiquel fez até uma cerca para ajudar a preservar a construção. Ao lado da residência, uma plantação de nogueiras fica protegida pela antiga obra. O espaço permanece isolado, para que as vacas que pastam nas terras não comam as mudas das nogueiras nem prejudiquem o velho muro.

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Maiquel descobre com a mãe, Natália como o passado da propriedade era divertido, repleto de brincadeira junto ao muro | Fotos: Rafaelly Machado

Um acréscimo à paisagem natural
A localidade de Boa Vista, no interior de Santa Cruz do Sul, certamente não tem esse nome em vão. Com morros e pequenos vales em toda a sua extensão, o lugar também abriga, em algumas propriedades, os antigos muros de pedra, que se mesclam às paisagens. Nos 21 hectares da família Lauschner, as edificações de pedra resistiram ao tempo. As construções antigas, como a casa principal e galpões, que abrigaram a família há mais de 70 anos, aos poucos estão sucumbindo e deverão ser demolidas. No entanto, os muros permanecem como parte do legado dos antepassados.

O produtor Renato Emílio Lauschner tem 65 anos e conhece bem esses muros. Na atual propriedade, adquirida do sogro, eles embelezam os morros verdes com pinheiros gigantes. No entanto, em São Martinho, onde ele morava antes de casar-se, essas edificações também existiam. “Mesmo sem muitos recursos, é uma construção forte, que resiste ao tempo. Eram feitos com pedras retiradas das propriedades rurais. Era um aproveitamento do material”, comenta.

No caso da família de Linha Boa Vista, os muros de pedra que ainda estão em pé tinham a função de cercar os animais criados na propriedade e serviam como antigos limites. A modificação da área fez com que eles perdessem a utilidade, sendo mantidos como elementos a mais na paisagem. Em um dos locais, araucárias plantadas pela família do sogro, Alfonso Klein, ajudam a compor uma imagem bucólica. “Deixamos a maior parte desses muros porque eles são, de fato, muito bonitos”, complementa Lauschner.

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Em Linha Boa Vista, Renato Lauschner diz que estrutura embeleza a paisagem

Do tempo em que se carregavam pedras na carroça
No Bairro Aliança, na zona urbana de Santa Cruz do Sul, Lorena Maria e Ivo Schimuneck estão casados há 50 anos. Eles vivem em um lugar que antigamente era conhecido como São João da Serra, no caminho de Cerro Alegre e Linha João Alves. Hoje a área não é mais rural, mas os 19 hectares da família, em meio a morros e ondulações, ainda preservam características do campo.

Por esse motivo, guardam talvez um dos maiores muros ainda encontrados no município. Para cada lado da casa principal são cerca de 150 metros de pedras cuidadosamente empilhadas. Quem passa abaixo, pela Avenida Barão do Arroio Grande, vê a construção que enche de orgulho o casal. “Quando viemos morar aqui os muros já existiam, foram feitos com pedras carregadas em carroça, com a força de animais e de nossos antepassados”, conta Ivo, feliz em saber que essa história seria tema de uma reportagem. “Então quer dizer que os colonos vão sair no jornal?”, brinca o morador.

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Dona Lorena explica que os muros das terras eram usados para separar os animais, que sempre foram presença garantida na propriedade. “Quando meu pai ainda era vivo, apenas um ano a gente plantou tabaco. Desde então, trabalhamos com cana para produção de schmier e outros produtos. Nós só fizemos alimentos.” Em um dos muramentos da propriedade ela contempla a paisagem, ao lado do esposo Ivo, da neta Aline Raquel Fry e da cachorra Belinha. “Ela tem que vir também para sair na fotografia”, anuncia Lorena.

Dona Lorena tem 71 anos e nasceu na localidade de São João da Serra. Ela conta que todos os morros e propriedades vizinhas eram de familiares. Olha para o céu azul e se orgulha pelo legado preservado. Entende que é importante manter os muros, tão importantes no passado. “Esses muros foram feitos juntos. De cada lado, cada uma das famílias fazia a sua parte. A nossa, agora, é preservar.”

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Família de seu Ivo e dona Lorena, no Bairro Aliança, preserva construções de pedra que circundam as terras, no alto dos morros

Patrimônio coletivo de Santa Cruz do Sul
Assim como a língua alemã, trazida pelas famílias de imigrantes que colonizaram o município, os muros de pedra fazem parte de um bem que é imaterial. A pesquisadora Lissi Bender explica que eles podem ser considerados parte do patrimônio coletivo da comunidade santa-cruzense. “Isso é uma classificação para todos os bens culturais, materiais ou não. É um patrimônio de todos, e por isso deve ser preservado.”

Lissi observa que a pedra era o material disponível para sinalizar as divisas territoriais. O seu uso atravessou as décadas para provar também outra característica marcante das famílias no interior: a confiança umas nas outras. “Onde as pedras eram colocadas, era a divisa e ninguém se atrevia a questionar isso. Sempre se recorria às pedras para identificar a marcação dos limites de cada propriedade”, conta a pesquisadora.

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Segundo o arquiteto santa-cruzense Ronaldo Wink, os muros de pedra têm mais de 150 anos. Ele explica que esse tipo de construção tem a ver com as primeiras edificações feitas na região e ainda estão em pé por um detalhe. Ao longo dos anos, as propriedades rurais foram ampliadas e modernizadas. Nesse processo de modernização, conforme Wink, várias construções foram demolidas e substituídas. “Como os muros não tinham outra função além de servir de cercamento aos animais, eles foram deixados, até esquecidos. Hoje são construções belíssimas, que encantam quem passa em frente a uma dessas propriedades”, avalia.

Wink explica que a pedra é um dos materiais mais duráveis na construção civil. Ao longo da história das civilizações, monumentos e prédios feitos de pedra foram os que resistiram ao tempo para ajudar a contar a história dos povos. “Nesse quesito, quanto mais simples a construção, com a maior quantidade de pedras, por exemplo, mais durável ela acaba sendo. Por isso esses muros ainda sobrevivem.”

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