Um dos mais renomados neurocientistas do Brasil e do mundo, o pesquisador Iván Izquierdo morreu nessa terça-feira, 9, aos 83 anos, em sua casa em Porto Alegre, algumas semanas após ter desenvolvido um quadro grave de Covid-19. De acordo com nota enviada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde ele atuou por 30 anos, sua morte ocorreu devido ao agravamento de uma pneumonia que enfrentava havia seis meses.
Argentino naturalizado brasileiro, o pesquisador era uma das principais referências nos estudos sobre memória em todo o mundo e um dos cientistas do País mais citados no exterior. Trabalhando com ciência básica, ele desvendou os mecanismos bioquímicos e fisiológicos envolvidos na formação das memórias, em como elas são evocadas, como persistem e também como são esquecidas, no que é considerado um dos seus trabalhos seminais.
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Essas pesquisas formaram a base de estudos sobre a doença de Alzheimer que são atualmente o foco principal do Instituto do Cérebro (InsCer) da PUC do Rio Grande do Sul, que ele ajudou a fundar em 2012. “Ele mostrou como os organismos precisam esquecer para dar lugar a novas memórias. Essa identificação de que para a memória existir é preciso esquecer e que o esquecimento não é algo ruim, mas sim muito importante, foi fundamental”, disse o também neurocientista Roberto Lent, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e amigo de longa data de Izquierdo.
Nos estudos que levaram à descoberta do mecanismo do esquecimento, Izquierdo e equipe conseguiram apagar a memória de ratos por meio do bloqueio da ação da proteína BDNF (sigla em inglês para fator neurotrófico derivado do cérebro), que atua justamente na persistência de uma memória.
“Esse sistema decide se a memória vai persistir por mais dois ou três dias, ou por mais uma semana, um mês ou a vida toda. Mas a verdade é que ainda não sabemos por que algumas memórias se mantêm mais que as outras nem como influenciar isso”, afirmou Izquierdo ao Estadão em 2007, alguns meses após a publicação do artigo científico.
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O trabalho na época se tornou famoso ao ser aventada a possibilidade de se criar uma droga do esquecimento. A descoberta evocava o filme Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, em que os personagens tomam um remédio para esquecer de momentos sofridos, mas o pesquisador rejeitou a ideia.
“Seria impossível colocar uma cânula diretamente no cérebro, injetar uma droga por meio dela e apagar uma memória específica sem prejudicar outras funções vitais”, afirmou ele em 2007 em uma entrevista à revista Piauí.
Seus trabalhos, porém, foram fundamentais para aumentar o entendimento sobre Alzheimer. “Não seria possível estudarmos hoje essa doença de se não tivéssemos as bases, fornecidas por Izquierdo, de como funciona a memória e como esquecemos”, complementa Jaderson Costa da Costa, atual diretor do InsCer.
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“Ele era um homem inspirador, culto, tinha uma dedicação e uma persistência para fazer pesquisa nesse País, que nunca foi muito fácil para a ciência. Ele não só conseguiu se dedicar e se aprofundar nas pesquisas de memória como colocou esse núcleo de pesquisa no Brasil em padrões internacionais”, disse Costa.
Autor de capítulos e livros sobre o assunto, Izquierdo dedicou um especialmente a esse tema. A Arte de Esquecer revela por que o esquecimento é tão fundamental para o funcionamento das nossas memórias. O livro destaca que “a arte de não saturar os mecanismos da memória é algo inato, algo que nos beneficia de maneira anônima, pois nos impede de naufragar em meio às nossas próprias recordações”.
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Ao longo dos mais de 60 anos de carreira, ele também se dedicou às memórias emotivas, especialmente às relacionadas ao medo, que, se por um lado são fundamentais à nossa sobrevivência, também são um dos mecanismos principais por trás do estresse pós-traumático. Izquierdo entendia que era possível lidar com elas, mas não apagá-las.
Formado em medicina pela Universidade de Buenos Aires, na Argentina, Izquierdo veio para o Brasil em 1973. Logo no começo foi professor de Fisiologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mas depois se instalou na UFRGS, onde ficou até se aposentar, em 2003, como professor de Bioquímica. Na instituição ele foi elevado a professor emérito em 2014. Em 2004, se mudou para a PUC-RS, onde atuou como professor de Neurologia e mentor do InsCer até falecer.
Em nota enviada pelo instituto, o reitor da PUC-RS, Evilázio Teixeira, definiu como “inquestionável” o legado de Izquierdo como pesquisador e formador de novas gerações de cientistas. “Os frutos de seu trabalho seguirão se multiplicando nas áreas do saber em que imprimiu seu nome e produção científica, especialmente na neurociência. A PUCRS se solidariza com sua família, amigos, colegas, alunos e orientandos”, diz.
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A UFRGS, também em nota, lembrou que Izquierdo, ao se referir à sua chegada a Porto Alegre, dizia que ali havia descoberto que “correr atrás de um sonho não é suficiente; é necessário se agarrar a ele e montar em cima, pois ele é a própria vida”.
A instituição destacou a lembrança de ex-alunos e colegas do neurocientistas, como o médico Diego Onofre de Souza, que foi orientado por Izquierdo em seu doutorado. Para ele, seu antigo mestre “mudou a neurociência internacionalmente enquanto estava na UFRGS”. Com sua morte, disse, “a ciência perdeu um grande cientista, e a humanidade perdeu um grande benfeitor no que se refere a tratamento e prevenção de doenças neurocerebrais”.
O neurocientista Roberto Lent lembra também a capacidade de inspiração que Izquierdo tinha sobre seus alunos e colegas. “Em toda sua trajetória, da Argentina ao Brasil, ele deixou uma enormidade de discípulos, alunos que se tornaram professores em todas as universidades por onde ele passou. Ele continuava colaborando com os grupos da Argentina, da Unifesp. Por onde ele passou, deixou um rastro de colaboradores e novos cientistas”, diz.
A neurocientista Mellanie Fontes-Dutra, da UFRGS, conta que foi lendo um capítulo sobre memória escrito por Izquierdo em um livro-texto de neurociência que ela se inspirou a seguir nessa área. “Ele escrevia com paixão não só sobre as pesquisas que ele consolidou, mas do assunto como um todo. Dava para sentir isso lendo os textos dele e aquilo me fez querer também me tornar aquele tipo de profissional. Ele me mostrou que era possível falar de um assunto complexo de um modo acessível”, diz a pesquisadora, que atua também com divulgação científica.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lamentou a perda em seu perfil no Twitter. “O mundo perdeu hoje um dos seus maiores neurocientistas. Iván Izquierdo, 84 anos, argentino de nascimento e, para nosso orgulho, radicado no RS, era referência mundial em pesquisas sobre memória. Que sua trajetória inspire as novas gerações e simbolize a valorização da ciência”, escreveu.
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Izquierdo era membro da Academia Brasileira de Ciências e um dos poucos estrangeiros a também compor a Academia de Ciências dos Estados Unidos. Ao longo da carreira, publicou cerca de 700 artigos em periódicos científicos com quase 23 mil citações. O neurocientista recebeu mais de 60 prêmios e distinções nacionais e internacionais, como a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Científico (1996), o Prêmio Conrado Wessel (2007), o Prêmio Almirante Alvaro Alberto (2010), e o título Doutor Honoris Causa das universidades de Paraná e Córdoba.
Em 2017, foi o único brasileiro entre os três vencedores do Prêmio Internacional para Pesquisa em Ciências da Vida 2017, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) por suas descobertas na elucidação de mecanismos dos processos de memória, incluindo consolidação, recuperação e aplicação clínica em envelhecimento.
Em 2018 foi laureado com o prêmio Cientista do Ano, na área de neurociências, pelo Instituto Nanocell. Ele é também o pesquisador com o maior número de citações acadêmicas da América Latina.
Izquierdo deixa a esposa, Ivone, filhos e netos. O velório ocorreu nesta quarta-feira, 10, no Crematório Metropolitano de Porto Alegre.
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