A notícia de que uma nuvem de gafanhotos migratórios encontra-se próximo à fronteira do Brasil com a Argentina, podendo dizimar plantações de estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, trouxe apreensão para muita gente. No entanto, essa não é a primeira vez que o fenômeno ameaça a agricultura do país. Em 1947, moradores de Passo do Sobrado e de Santa Cruz do Sul presenciaram a fúria dos insetos, que atacaram diversas lavouras.
A secretária da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, de Passo do Sobrado, Giselda Maria Kroth, foi quem encontrou o registro da passagem dos insetos pelo município. Segundo ela, há cerca de um ano, quando procurava por documentos para a comemoração dos 90 anos da entidade, encontrou o primeiro livro-tombo, também conhecido como livro-ata, e verificou com surpresa essa menção.
“Peguei o livro e comecei a folheá-lo e, diante de tantos registros interessantes da época, encontrei o do ataque de gafanhotos. Agora, quando eles ameaçaram chegar ao Brasil, lembrei que não é a primeira vez que isso acontece, e decidi compartilhar o fato”, salientou.
Publicidade
LEIA TAMBÉM
Governo define regras para eventual combate a gafanhotos
Gafanhotos: governo declara emergência fitossanitária no RS
Os apontamentos do vigário da época, José Reinaldo Rauber, detalhados em duas páginas e intitulados de “Inundação de Gafanhotos”, apontam que em 5 de agosto de 1947 o ataque durou quase trinta dias e se estendeu por diversas localidades, deixando rastro de destruição em várias propriedades.
“Encontramos entre nós os terríveis gafanhotos na localidade da Malhada; devido ao frio e à chuva ficaram quase oito dias. De lá, foram para Potreiro do Inferno, onde comeram mudas de muitos canteiros. Após três dias, levantaram voo para Cerro Alegre, onde permaneceram por dias”, relatou.
Publicidade
Já no dia 15 de agosto, os insetos estiveram em Rincão do Sobrado e, depois, em Taquari Mirim e Campo do Sobrado. Alguns deles teriam ainda permanecido por semanas no centro da então vila. Em 31 de agosto daquele ano, uma celebração religiosa chegou a ocorrer na paróquia devido à preocupação dos moradores.
LEIA MAIS: Argentina alerta fronteira gaúcha para nuvem de gafanhotos
O vigário intercedeu pelos fiéis. “Ocorreu no Evangelho o capítulo em que o senhor fala da província divina. Apresentei esta passagem para dizer ao povo, justamente alarmado, pois consta que em cinquenta municípios já tiveram esses perigosos gafanhotos, que tenha fé e confiança em Deus”, apontou.
Publicidade
O documento também relatou a situação de uma terrível seca que havia atingido a região no mesmo período. Depois de Passo do Sobrado, a nuvem de insetos teria migrando para Linha João Alves, interior de Santa Cruz do Sul.
Moradores ainda recordam do ataque verificado naquela época
O casal de aposentados Iedo João Weber, de 85 anos, e Olga Weber, 81, que reside no Centro de Passo do Sobrado, ainda lembra do ataque dos insetos, que marcou parte da sua infância. Iedo, que na época tinha 11 anos, afirma que estava na escola, que funcionava em prédio na Rua Nossa Senhora do Rosário, próximo à paróquia, quando ouviu dos colegas que um enxame de gafanhotos teria invadido a propriedade de Edmundo Becker, hoje falecido. “Saímos no recreio e, como usávamos guarda-pó, pegamos ele para espantar os insetos. Para nós, era uma novidade, mas eles pareciam mais ferozes que os de hoje; devoraram uma plantação inteira de favas em poucos minutos”, salienta.
Para Olga, que tinha 6 anos, foram dias de tristeza. Ela recorda que toda a plantação da família, existente em Linha Pinheiral, acabou destruída pelos insetos. “Foi muito triste, não sobrou nada da lavoura de milho e de feijão, e aquilo era tudo que tínhamos para a sobrevivência da nossa família”, conta.
Publicidade
Já a santa-cruzense Brunhilda Frey, 89 anos, também recorda com tristeza da passagem dos insetos. Aos 15 anos, e com o pai já falecido, ela, os irmãos e a mãe tentaram incansavelmente controlar a fúria dos gafanhotos, que destruíram as lavouras de batatinha e outras culturas que garantiriam o sustento da família. “Pegamos panos e amarramos em taquaras. Alguns vizinhos vieram nos ajudar, mas os insetos destruíram tudo, e depois seguiram para as propriedades dos vizinhos”, enfatiza.
A agricultora, que hoje reside no Corredor Frey, conta que durante dias a família teve de fazer vigília para impedir um novo ataque. “Conseguimos matar alguns, mas eram muitos que acabaram colocando ovos em diversos locais. Tínhamos de procurar e depois destruir os ovos.”
Conforme Brunhilda, nenhum ataque dos insetos a seres humanos foi registrado. Assim como nenhum registro de doença causada por eles. “Eu nunca tinha visto nada igual. E, como não tínhamos veneno, a única coisa que podíamos fazer era espantá-los com panos e pedaços de madeira. Mas ninguém se feriu por causa disso, foi somente a destruição nas lavouras mesmo”, frisa.
Publicidade
Situação atual
As mudanças climáticas fizeram com que a nuvem de gafanhotos que estava próximo ao Rio Grande do Sul se deslocasse para oeste da Argentina, em direção ao Rio Paraná. Monitoramento e ações de combate à praga estão sendo intensificadas. A maior preocupação das autoridades fitossanitárias brasileiras é com influência meteorológica, como a convergência dos ventos, o que poderia facilitar o deslocamento dos gafanhotos para o oeste e o noroeste do Rio Grande do Sul.
LEIA MAIS
Frio e chuva no Sul freiam nuvem de gafanhotos no Brasil
Nuvem de gafanhotos se desloca em direção ao Uruguai
COLUNA MEMÓRIA
As nuvens de gafanhotos já foram pautadas em outras ocasiões pela Gazeta do Sul. Em 21 de outubro de 2019, o jornalista José Augusto Borowsky, na coluna “Memória”, publicada nas edições de segunda-feira, abordou a passagem dos insetos por Santa Cruz na primavera de 1945, e depois, nos anos de 1947 e 1948, quando causaram prejuízos incalculáveis aos agricultores.
LEIA TAMBÉM: Santa Cruz já enfrentou nuvem de gafanhotos como a que ameaça a fronteira