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Minha tia rebelde

Meses atrás, tive um debate sobre religiões com um respeitável jornalista ateu. Eu defendia, com uma significativa dose de pragmatismo, que elas podem exercer um papel positivo à medida que regulam nossos impulsos por meio de princípios como amor ao próximo, humildade, respeito etc. Meu interlocutor, ao contrário, argumentava que os prejuízos causados pelas religiões são muito maiores que as vantagens que eu via. Era um papo filosófico e eu adoro papos filosóficos. Somos amigos de longa data e uma conversa desse tipo nos enriquece e flui sem mágoas.

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Venho de uma família católica. Minha mãe era uma mulher cheia de fé. Toda noite, improvisava um altar no quarto e rezava o terço. Tinha uma convicção que dispensava maiores conhecimentos litúrgicos ou teológicos. E até onde se saiba, nunca teve dúvidas quanto a isso.

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Talvez um pouco para provocá-la, talvez por ideologia, um dia minha tia mais nova decidiu revelar seu ateísmo. Aproveitou o momento em que minha mãe fazia uma de suas cotidianas evocações ao todo-poderoso, e disse: “Deus não existe, é tudo bobagem.”

Aquela mulher bonita, jovem, independente e um tanto rebelde, ousava desafiar a irmã mais velha. O que não era pouco. Minha mãe não esperou um segundo para contestar a novidade, sem meias palavras, como era seu estilo. Resumiu o anunciado ateísmo como “completa loucura” e encerrou o assunto.

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A conversa foi breve, mas para mim inesquecível. Lembro, principalmente, a inquietação que senti por não conseguir decidir, aos 11 anos, qual das duas tinha razão. E o quanto aquele “existe”, “não existe” martelou minha cabecinha. Cresci, e o tempo me convenceu de que a verdade, neste caso, não me pertence. E que o melhor a fazer é respeitar todos os credos. E os não credos.

Vivemos uma época tão conflagrada que evitamos certos temas para não causar atritos. As gerações se sucedem e ainda tem gente que se incomoda diante de um ateu ou de um cético. É justo? Eu acho que não. Acho que há pessoas que realmente não encontram respostas para coisas que outros consideram óbvias. E daí? Não dá para simplesmente deixar a criatura em paz?

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Religião é só um exemplo. Mas é um exemplo emblemático. Um território de intolerância que resiste e talvez nunca desapareça. Nem deveria ser necessário lembrar que o outro não precisa pensar que nem nós. Que a vida segue e, às vezes, o panorama muda.

Minha tia, por exemplo. Nos reencontramos no último Natal na cidade onde nasci. Na ceia, falamos sobre fé. Aproveitei então para fazer uma confissão tardia e contei o quanto o ateísmo dela havia marcado minha infância. Ela me olhou, ainda bonita e altiva no seus 81 anos, fez uma expressão de surpresa, e disse: “Eu, Rosilane? De onde tu tiraste isso? Eu nunca fui ateia.”

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