Há uns dois anos consegui convencer minha esposa, Patrícia, da necessidade de instalarmos um escritório lá em casa. Meu argumento derradeiro foi que tal espaço seria imprescindível para que conseguisse tocar, com maior velocidade, minha tese de doutorado. Então, transformamos em escritório um espaço originalmente concebido, pelos engenheiros que projetaram a casa, para ser a despensa – um cubículo de dois por quatro metros, felizmente, dotado com uma janela.
Na colônia, sabe-se, a despensa é um lugar sagrado, imprescindível para abrigar as barricas com o feijão cultivado para consumo próprio, as sacas da farinha destinada às cucas e pães de forno, a Schmier e as compotas, os freezers com cortes de reses e suínos abatidos ao longo do ano. Contudo, como habitantes do núcleo urbano, impossibilitados de criar gado e suínos de corte e sem espaço para plantar feijão, havíamos convertido a despensa em depósito para brinquedos das crianças e tralhas que se usam uma vez por ano – como enfeites de Natal e de Páscoa. Foi preciso uma operação de guerra para realocar tudo aquilo, mas, enfim, abriu-se espaço para o tão sonhado escritório.
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Trata-se de um ambiente bastante franciscano, que abriga uma mesa para o computador, uma cadeira simples e um armário com os livros. Mas que me possibilitou pendurar, nas paredes, dois grandes murais de isopor onde posso fixar, com alfinetes, anotações com hipóteses, trechos de autores e gráficos com dados referentes a minha tese – o que ficaria bem esquisito na sala ou na cozinha, caso não tivesse convencido minha esposa a criar o escritório. E, como minha pesquisa envolve epistemologias bastante complexas – imaginário e midiatização –, os murais logo ficaram abarrotados com pedaços de papel cheios de garranchos que só eu entendo.
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Contudo, os murais caíram nas graças das gurias mais novas lá de casa. Ágatha, a caçula, e a Yasmin, um ano mais velha, sentem um prazer inenarrável em fixar coisas nos murais, adoram a sensação provocada pelo movimento do alfinete ao transpassar o papel e, a seguir, o isopor. E, com isso, minha infinidade de anotações divide espaço com recadinhos carinhosos e desenhos feitos com hidrocor. Outro dia, tive que garimpar uma citação de Gaston Bachelard escondida atrás de um unicórnio cor-de-rosa. Cheguei a comprar um painel de isopor para o quarto das duas, mas elas não aprovaram a ideia.
– Quarto não é lugar para murais de recados – argumentou-me a caçula. – O lugar disso é no nosso escritório! Sim, tenho que admitir: o escritório é delas também. Principalmente agora, que precisam de um ambiente para as aulas online. O escritório, cotidianamente, converte-se em sala de aula.
Além disso, não me furto de reconhecer: os recadinhos e desenhos que elas fixam no mural destinam-se a mim. Portanto, que fiquem onde estão. Tornam bem mais alegres as longas horas de pesquisa e redação.
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Tempos depois instalei no escritório um outro mural – ardilosamente suspenso a uma altura que as gurias não alcançam – destinado a tarefas e metas. Neste, os bilhetes são dispostos conforme uma hierarquia de importância e urgência, e contêm lembretes que vão desde consertar o pneu da bicicleta até fazer a rematrícula das crianças na escola, passando pelas contas a pagar. Acabou tornando-se outro mural repleto de bilhetes – e não só devido às contas.
Com a chegada do fim do ano, resolvi fazer uma triagem e verificar que metas terão de ser postergadas para 2021. Fiquei surpreso com o volume de coisas que não consegui fazer em 2020, muitas delas, por força da pandemia. Um exemplo é a sessão de autógrafos de meu novo livro, O homem da sepultura com capacete, que não poderá ocorrer enquanto o coronavírus estiver por aí.
Não, não estou me queixando. Isso não é nada de mais diante dos incontáveis casos de pessoas duramente impactadas pela pandemia. Além disso, o livro saiu e segue à disposição dos leitores em algumas da principais lojas do ramo e na Casa de Clientes da Gazeta – ali, com desconto especial para assinantes da Gazeta do Sul, vale lembrar.
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O que quero dizer é que, com a pandemia, aprendemos que nem tudo depende apenas de nós. O coronavírus mostrou-nos que há desventuras que não podemos controlar e se sobrepõem, inclusive, a nossa força de vontade. Segue valendo a máxima da resiliência, da capacidade de adaptação, da importância do esforço e da criatividade, mas nem sempre tais virtudes mostram-se suficientes. Foi assim em uma série de pandemias, guerras e crises pelas quais a humanidade já passou.
Paciência… teremos que nos conformar com o possível e com a perspectiva da vacina, que logo em 2021 deverá estar aí. E, então, poderemos estabelecer novas metas e retomar nossas rotinas. Lá em casa, um hábito que planejamos retomar, ao fim da pandemia, são os passeios de bicicleta com as crianças. O que me faz lembrar, aliás, que ainda preciso consertar o pneu da bicicleta.
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