Todos os anos, no Brasil, maio ganha a cor laranja para lembrar a campanha de enfrentamento e prevenção ao abuso sexual de crianças e adolescentes. Em 2000, a lei federal 9.970 foi sancionada e instituiu o 18 de Maio como o Dia Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes no Brasil. A data escolhida lembra o assassinato brutal da menina Araceli Crespo, de apenas 8 anos, que foi sequestrada, estuprada, morta e jogada em uma área de mata em 1973. Seu corpo foi encontrado dias depois, desfigurado por ácido.
Com a campanha, ações de prevenção e de repressão são intensificadas em maio, buscando maior conscientização das pessoas para que possam ajudar a identificar vítimas e denunciar os autores dos crimes. Contudo, a luta apresenta entraves e não é fácil combater os crimes relacionados a abusos de menores. Um dos fatores que complicam a identificação é que os criminosos se encontram, na maioria dos casos, no ambiente familiar das crianças e adolescentes. Conforme levantamento do Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes (Ceevsca/RS), 71,6% dos casos notificados de violência sexual no período de 2015 a 2020, no Rio Grande do Sul, aconteceram na casa da vítima.
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Polícia Civil atua para tentar reduzir casos
Dados disponibilizados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Rio Grande do Sul mostram que em Santa Cruz do Sul 38 casos foram registrados em cada ano, tanto em 2021 quanto em 2022. Em 2023, de janeiro até abril, foram sete. Entretanto, nem sempre esses números mostram a realidade, pois quando o assunto é crime sexual, muitos casos podem estar subnotificados.
A delegada Raquel Schneider é a titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Santa Cruz. De acordo com ela, estudos apontam que grande parcela dos casos de abusos sexuais contra crianças ou adolescentes não chega ao conhecimento das autoridades. “A campanha também tem esse viés, de incentivar as denúncias. A gente sabe que boa parte desses casos acontecem dentro de casa, com familiares, com pessoas próximas, e as vítimas acabam não denunciando, por medo e por sofrerem ameaça. Por exemplo, o pai é o abusador, e ele diz que vai ser preso se falar para alguém.”
Além de tudo, a titular da DPCA observa que muitas vezes existe uma inversão da culpa. “A gente percebe, nos casos que chegam até nós, que essas crianças e adolescentes se sentem culpados pelo que aconteceu com elas. Ao contrário, elas são vítimas. Precisam ser encorajadas a denunciar, saber que elas são as vítimas e jamais as culpadas.”
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A apuração dos crimes, conforme Raquel demanda um tratamento diferenciado de outros. “Temos que ter todo um cuidado com essa vítima, para ela não ser revitimizada. No exame físico, o perito deve ter todo o cuidado com relação a isso. Na oitiva, tentamos fazer com que aquela vítima não sofra tendo que reviver a situação, para, assim, poder trazer subsídios a uma investigação e a um processo judicial posteriormente”, acrescenta a delegada. De 2 a 18 de maio, a DPCA de Santa Cruz participou de uma operação que ocorreu juntamente com vários órgãos de segurança em nível nacional, além de realizar ações em conjunto com a Prefeitura de Santa Cruz do Sul.
A diretora da Divisão Especial da Criança e Adolescente da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, delegada Caroline Virginia Bamberg Machado, destaca a importância do papel da escola no combate à violência, sexual ou de outros tipos, contra crianças e adolescentes. “É um assunto delicado, mas que gera muita controvérsia. No entanto, acho de suma importância que a escola, conforme cada idade do aluno, promova ações que visem abordar o tema, trazendo conhecimento a eles, de forma a torná-los menos vulneráveis a esse tipo de violência.”
Caroline observa que a Polícia Civil trabalha incessantemente no combate a esse tipo de violência, “Tanto com ações repressivas durante o inquérito policial como ações preventivas – caso do programa Papo de Responsa –, assim como promovendo campanhas educativas”, completa a diretora.
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Registros de estupro de vulnerável em Santa Cruz do Sul
2021
Janeiro…………….6
Fevereiro…………4
Março……………….1
Abril………………….7
Maio…………………3
Junho……………….3
Julho………………….1
Agosto………………1
Setembro……….2
Outubro………….2
Novembro……..5
Dezembro………3
2022
Janeiro…………….4
Fevereiro…………0
Março……………….1
Abril………………….3
Maio…………………3
Junho………………4
Julho………………..2
Agosto…………….2
Setembro…….10
Outubro…………2
Novembro……..3
Dezembro……..4
2023
Janeiro…………….4
Fevereiro………….1
Março……………….1
Abril…………………..1
Fonte: SSP-RS
Ações marcaram o dia 18 de maio
O dia 18 de maio, que caiu na última quinta-feira, foi marcado por diversas atividades em Santa Cruz do Sul. Ações foram realizadas durante a manhã e a tarde pela Prefeitura, secretarias, serviços de convivência, Polícia Civil, Conselho Tutelar e escolas, dentre outros. À tarde, no campo do Bairro Bom Jesus, a comunidade participou de um evento voltado à prevenção. Dezenas de crianças estiveram na atividade.
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De acordo com a secretária municipal de Desenvolvimento Social, Roberta Pereira, a presença dos serviços de convivência mostra o quanto o poder público já faz, durante todo o ano, para prevenir situações de violência. Na ocasião, foi lançado o programa TransformAção, que vai contar com 200 vagas para participação em oficinas de dança, grafite, mídias sociais, inglês e acesso ao mercado de trabalho. O programa está no âmbito do Pacto Santa Cruz pela Paz. “Acreditamos muito na educação e nas ações de prevenção. E essa é mais uma. Temos 12 serviços de convivência que tiram as crianças e adolescentes da ociosidade, de talvez estarem na rua sendo aliciados pelo crime”, diz Roberta.
Presente no lançamento do programa, a prefeita Helena Hermany ressaltou a importância de trabalhar com atividades no contraturno escolar. “Quanto mais conhecimento vocês acumularem, melhor será a vida de vocês”, disse ela às crianças e adolescentes.
ENTREVISTA
Eduardo Saraiva – Psicólogo e professor da Unisc
Gazeta do Sul – Muitos casos de abuso sexual acontecem na casa da vítima. Qual o papel da escola na prevenção ao abuso sexual de crianças e adolescentes?
Eduardo Saraiva – Temos que pensar muito bem o que e como vamos falar, porque não se quer criar um pânico moral e pensar que, de repente, a proximidade afetiva entre pais e filhos possa ficar comprometida. Ao mesmo tempo, trabalhar com informação é importante. A escola pode informar, atuar com essa perspectiva de trazer o tema para diferentes disciplinas e em diferentes formatos, com dinâmicas e abordagens mais lúdicas.
O fato é que precisamos falar sobre a dimensão da sexualidade, do cuidado com o corpo, mas sabendo que há linguagens específicas para cada faixa etária. Muitas vezes, é na escola que há demonstração da alteração de comportamento. Se a criança passou a ficar muito tímida, com dificuldade de interação social, ou ela relata que passou a fazer xixi na cama de noite, ou tem dificuldade, por exemplo, no controle das fezes. Não que tudo isso indique abuso, mas são alterações no comportamento a que a escola pode ficar atenta.
Temos que sensibilizar e capacitar professores, porque é necessário equilíbrio entre observar uma alteração de comportamento e já dizer que houve abuso. Precisamos ter muito cuidado com esse pressuposto, e ao mesmo tempo estar atentos e sensibilizados. Uma coisa que eu tenho trabalhado muito é a relação da escola com as unidades básicas de saúde, principalmente com os agentes comunitários. Se conseguirmos aproximar mais os agentes das escolas, teríamos uma atenção reforçada, porque o agente comunitário de saúde está lá acompanhando algumas famílias e pode identificar situações, porque ele está dentro de casa.
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Quais sinais crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual tendem a demonstrar?
Os sinais variam, não podemos afirmar que todas as crianças que sofreram abuso têm os mesmos sinais e sintomas. Crianças demonstram de uma forma e adolescentes de outra. Para crianças, o que a gente sugere aos adultos é ficarem atentos a mudanças de comportamento muito rápidas, relacionadas a hábitos alimentares, de sono, excesso de isolamento, muito silêncio, ou se é uma criança com muitos medos. Na escola, elas podem demonstrar alguns sinais, como ficarem muito quietinhas de uma hora para outra. A criança tem a tendência de não falar, ela fica mais silenciosa, porque o pacto do abuso se dá em torno do segredo, os abusadores dizem “esse é nosso segredo”. Algumas vezes, inclusive, vem com uma mensagem amorosa. Ou seja, é um pacto do segredo e ainda com uma narrativa amorosa.
Já os adolescentes, quando temos adultos dentro da escola, alguns têm procurado esses adultos e são encorajados. Em um ambiente de confiança, eles falam. Ou seja, precisa ser em um local com pessoas que realmente escutem, que levem a sério. A criança às vezes é desencorajada a falar, porque o adulto duvida que possa ter acontecido. Às vezes esse adolescente tentou falar na infância e foi desacreditado, mas ele tenta de novo. Por isso, é necessário ter alguém que realmente escute e acolha. Ele também pode manifestar algo que aconteceu em mudanças de comportamento, como autolesão e ideação suicida.
A educação sexual ainda pode ser considerada um tabu nas famílias e nas escolas, apesar do avanço da realização de atividades voltadas à prevenção. Por que é importante abordar o assunto?
A primeira coisa afazer é assumir que esse é um tema importante e que deve ser tratado com seriedade, capacidade técnica, com instrumentos adequados para cada faixa etária, com estilo e linguagem própria e com material apropriado. É uma questão de saúde e que precisa estar na escola porque a escola é um lugar onde a vida acontece, a sexualidade não fica do lado de fora. Precisamos trabalhar na formação continuada de professores para abordar esse tema dentro da escola com conhecimento, porque alguns professores gostam do assunto. Quando a gente abre espaço para falar desse tema no ambiente escolar, surgem muitas perguntas e não podemos terceirizar essa questão, não podemos deixar que eles busquem no Google as informações. Cabe à escola o trabalho de construção de conhecimento.
No caso de crianças ou adolescentes que sofreram abuso, qual a melhor maneira de conviver com o trauma?
A situação abusiva é traumática e deixa sequelas. Ao identificar que crianças e adolescentes estão passando por essa situação, é preciso parar o abuso e encaminhar a vítima para um bom tratamento, porque a terapia é um bom caminho para a ressignificação. O que a gente faz durante a terapia é ajudá-lo a enfrentar algumas ideias, como o sentimento de culpa. A terapia fortalece as vítimas e principalmente fortalece o seu caminho para que não caiam em repetições, em novas relações abusivas. E também trabalhar com feridas, fraturas psíquicas, dores emocionais que podem acompanhar essas pessoas durante muito tempo e resultar em um grande número de sintomas físicos ou mentais.
Temos que pensar enquanto política pública em como estamos atendendo as vítimas de abuso, qual a preparação dos profissionais de saúde para isso. Mas também devemos pensar em como estamos trabalhando com abusadores, o que estamos fazendo para que esses sujeitos não sigam fazendo o que fazem. Tem o caminho de pensar também no tratamento para famílias que são abusivas.
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