É desconfortável, para não dizer horrível, admitir que se possa sentir alívio com o infortúnio dos outros. Tipo, meu barco está afundando, mas os do lado também estão. Pior ainda é confessar que isso, por vezes, acontece conosco. Comigo, inclusive.
A Psicologia, por certo, explicaria isso melhor e com mais propriedade. Vou interpretar do meu jeito.
Quando ainda íamos à escola, carregávamos na mochila valores e princípios bem pesados de honradez, de verdade, que nossos pais nos ensinaram. “Você tem que fazer a coisa certa!” Essa era a lei. E as pessoas que nos inspiravam – nossos pais, o vigário, o professor, o vizinho solícito, até o dono da mercearia – todos eram unânimes: “se você não fizer a sua parte, não espere que alguém faça por você!”
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É verdade. Só que no mundo real essa equação nem sempre é lógica e definitiva. Raciocine comigo: você passa por dificuldades, luta quase sem forças, sem recursos, vê oportunidades cada vez mais escassas, se submete a atividades que nunca imaginou para o seu currículo. Mas, enfim, você se convence que é uma questão de sobrevivência. Sua e dos seus. E se sujeita ao sacrifício em nome da dignidade que, aprendemos, é preciso honrar. Custe o que custar.
No mundo real, você se depara com reiteradas violações que sofre no dia a dia. É água que falta nas torneiras, luz que não ilumina, internet que não conecta, o ônibus que atrasa ou nem chega, motorista de aplicativo que te abandona no meio do compromisso, ladrão que já não tem dia, hora e melhor momento para te roubar. A lista é infindável.
E você acaba se conformando diante da complacência (ou seria ausência?) da nossa legislação. Sempre haverá alguém para nos consolar: “Infelizmente, é isso que está acontecendo também comigo”.
Já reparou que a lei, quase sempre frágil na defesa dos seus direitos, é impositiva e implacável quando lhe cobra deveres?
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Deixa de recolher um tributo, por exemplo, e o fisco, de qualquer instância e a qualquer momento, vai te achar. E vai te cobrar e punir com multa, juros e constrangimento, se achar necessário.
Ah, mas o Poder Público também te deve obrigações e terá que cumpri-las, alguém tentará racionalizar.
Engano seu! O Estado, em qualquer das esferas, este mesmo que cobra, pune e não perdoa, negligencia direitos básicos que são assegurados por lei, mas que acabam deletados ou arquivados em alguma pasta na nuvem virtual de onde não podem mais ser acessados.
É justo isso? Você faz a sua parte, trabalha e rala para pagar o imposto que lhe cobram e, quando chega a sua vez de usufruir do seu direito para ter um atendimento na saúde, na segurança, na educação, na rodovia que você utiliza para se locomover, na estrada em que acessa a sua propriedade no interior, lhe dizem que não há recursos suficientes para prestar o serviço que está reivindicando.
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Não! Não dá mais para aceitar esse discurso. E não podemos mais admitir que a dor dos outros nos alivie ou nos conforte. Nós merecemos mais! Todos nós! Ninguém deve se submeter à dor. Nem à humilhação.
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