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Memórias de um santa-cruzense: o muro que dividiu a Alemanha começou a cair há trinta anos

Há exatos 30 anos neste sábado, Berlim, capital da Alemanha, deixou de ser duas para voltar a ser uma. Por mais de 28 anos, desde a noite de 13 de agosto de 1961, a ala leste da cidade, sob domínio da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ficou apartada da ala oeste, sob domínio de Itália, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Parentes, amigos e conhecidos ficaram por quase três décadas separados pelo Muro de Berlim, de 3,6 metros de altura, de cimento maciço, com cerca de 300 torres de vigilância espalhadas ao longo do trajeto. Na noite de 9 de novembro de 1989 ele finalmente começou a ruir.

Esse afastamento radical entre a Alemanha Oriental, sob poder soviético, comunista, e a Alemanha Ocidental, de economia capitalista, constituiu a marca concreta da Guerra Fria, o estranhamento entre Estados Unidos e União Soviética que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. E a queda do Muro, em 1989, sinalizou, por extensão, a derrocada da própria URSS, que se desfez em dezembro de 1991.

Cerca de 43 quilômetros do muro percorriam o centro da cidade. No todo, ele se estendia por 155 quilômetros, em que o lado soviético buscou impedir sua população de fugir para o outro lado, onde os bens de consumo e a qualidade de vida eram flagrantemente mais atrativos. O professor e escritor santa-cruzense Flávio Kothe, que completa 73 anos no próximo dia 20, encontrava-se na Alemanha em 1989 e foi testemunha do contexto em que, no dia 9 de novembro, a barreira começou a ser removida. Em artigo exclusivo, abaixo, recupera para a Gazeta do Sul as memórias daquele momento.

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O Muro de Berlim foi tema constante, e incontornável, ao longo das décadas de 60, 70 e 80 em todas as áreas da sociedade, inclusive na cultura e nas artes. O álbum The Wall, da banda britânica de rock Pink Floyd, lançado em 30 de novembro de 1979, uma década antes da queda do Muro, tem alvo claro. Na literatura, escritores do Leste e escritores do Oeste, cada qual motivado por seus entusiasmos e suas crenças, por vezes com a cooptação de governos, defendiam suas realidades. Alguns enviaram seu recado para o futuro, caso de Peter Schneider, que viveu na Alemanha Oriental e traduziu vivências e impressões do durante e do depois.

Nesse depois, os vestígios físicos do Muro praticamente sumiram ao longo dos anos, sendo mantidos em pé, como memorial, alguns trechos. O traçado da linha sob a qual o Muro fora erguido permanece no ambiente urbano de Berlim, como sutil marca das barreiras que o homem tende a erguer – impulso do qual tem dificuldade de se livrar.

E o povo se reencontra: trecho de 43 quilômetros do muro percorria o centro da cidade de Berlim. | Fotos: Divulgação

PARA SABER MAIS

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Três livros podem auxiliar o leitor a entender melhor as circunstâncias históricas tanto da construção do Muro de Berlim quanto
as que cercaram a sua derrubada, em novembro de 1989, e a época posterior, com a gradativa reunificação das duas Alemanhas

Longo e abrangente estudo realizado pelo historiador britânico Frederick Taylor, de 71 anos, Muro de Berlim: um mundo dividido 1961-1989, publicado pela Record em 2009, em 571 páginas, contextualiza a construção do Muro, bem como as suas decorrências para ambas as Alemanhas e a repercussão desses quase trinta anos em todas as áreas do saber, e no planeta inteiro.

Romance de cunho memorial ou autobiográfico, O Muro, sob o selo da Scortecci, é de autoria do escritor, tradutor e professor santa-cruzense Flávio Renê Kothe, radicado em Brasília, onde leciona junto à UnB. Kothe residia na Alemanha justamente na época da queda do Muro, de maneira que foi testemunha daquele fato marcante na história da humanidade.

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O escritor alemão Peter Schneider, nascido em Lübeck, e que vive na capital alemã há mais de 50 anos, reflete em Berlim, agora: a cidade depois do muro, publicado pela Rocco em 2015, em tradução de Ryta Vinagre, como a cidade conseguiu superar (ou nem sempre) a coexistência de duas realidades separando uma mesma sociedade por quase três décadas.

ARTIGO ESPECIAL

Flávio R. Kothe
Professor e escritor santa-cruzense, radicado em Brasília

Foto: Divulgação

“Pude vivenciar de dentro todo aquele processo”

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Quando eu era diretor do Instituto Hans Staden, em São Paulo, cumpri um dispositivo do estatuto, de manter relações com os países de língua alemã. Entrei em contato com o consulado da Alemanha Oriental, para diversas atividades de intercâmbio, algo que nunca havia sido feito antes. Para minha surpresa, acabei recebendo um convite para visitar a Alemanha Oriental. A partir disso, acabei sendo depois convidado a ser catedrático visitante na Universidade de Rostock, para onde fui no início de 1988 e fiquei até meados de 1992, de maneira que pude vivenciar desde dentro o processo que levou à Queda do Muro. Escrevi um romance sobre isso, O Muro, que guardei por 25 anos e foi publicado pela editora Scortecci. Eu queria o filtro do tempo, mas fiz apenas revisão na redação.

Quando estudara em Berlim Ocidental, de 1970 a 1972, eu havia vivenciado o Muro como algo que nos rodeava. Conversando com o diretor aposentado de uma empresa da Alemanha Oriental, ele disse que a construção do Muro tinha sido uma necessidade não só por causa da Guerra Fria. O custo de vida no lado oriental era barato, enquanto os salários no lado ocidental eram elevados, de maneira que as pessoas preferiam morar de um lado e trabalhar no outro, o que fazia então o comunismo sustentar o capitalismo.

O Muro decorreu da divisão da Alemanha entre os Aliados ao final da guerra. O lado dito Oriental era a zona de ocupação soviética, mas esse lado era a Alemanha do Meio, porque o lado oriental foi anexado à Polônia e à Rússia, portanto regiões como Silésia, Sudetos e Pomerânia – de onde se originam muitas famílias de Santa Cruz do Sul – deixaram de ser alemãs. Em 1947, todos os alemães foram expulsos de suas casas. Quem ficou, foi morto. Nos cemitérios alemães, os poloneses passaram os tratores, as cidades e os lugarejos perderam os nomes que tinham. Eu fui lá e vi.

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O modo de produção soviético não funcionava direito. Havia excesso de centralização. A produtividade era baixa, os salários eram bastante iguais e havia garantia de emprego. Após o entusiasmo inicial, a maioria se acomodava. A velocidade da caravana é a do camelo mais lento. Os preços não condiziam com os custos de produção: o que fosse considerado necessário ao operário era vendido abaixo do custo; o que fosse considerado luxo, muito acima. A distinção se baseava, porém, nas condições inglesas do século XIX, o que não correspondia ao que se via na Alemanha Federal. Os maiores críticos do sistema, quando cheguei lá, eram membros do Partido SED, do governo, que não conseguiam implantar as mudanças necessárias.

Um ano após a Queda do Muro, fui convidado a participar de uma reunião de intelectuais da região do Báltico sobre as razões da falência do sistema. A conclusão deles foi que o socialismo acreditava que o homem é bom por natureza, o que faria com que todos se dedicassem ao bem comum, dando o melhor de si para todos. Disseram que nem 5% das pessoas estava propensa a isso. A grande maioria queria o máximo de vantagens para si com o mínimo de esforço. Em suma, o problema é mais complexo do que uma vitória regional do capitalismo sobre o modelo soviético de produção, que não foi capaz de fazer as mudanças feitas depois pela China, que a tornaram, talvez como capitalismo de Estado, o modo mais exitoso de produção em curso.

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