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MEMÓRIA

Um tesouro de 4 mil livros no interior de Venâncio Aires

Partindo da referência de que o brasileiro lê, em média, 2,43 livros por ano, conforme dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, da Fundação Pró-Livro, um leitor que viesse a manter esse ritmo necessitaria de nada menos do que 1.646 anos para apreciar os volumes disponíveis em uma biblioteca mantida em Linha Andréas, no oitavo distrito de Venâncio Aires. Em realidade de interior. E, ainda por cima, em sua ampla maioria, são exemplares em língua alemã.

Ou seja, a tarefa requer proficiência em língua estrangeira. Isso mesmo. Uma coleção que começou a ser formada há 120 anos na localidade, a 25 quilômetros da cidade (ou a 18 em relação à sede de Mato Leitão, cuja divisa situa-se próximo), guarda relíquias, pelas quais a comunidade zela, e que a enchem de evidente orgulho.

Preservado pela Associação de Leitura e Canto Jovialidade, o local parece destoar de tudo o que se ouve ou se constata na atualidade em termos de esforço pela manutenção de bibliotecas físicas, até mesmo em ambiente urbano, muitas das quais têm sido desfeitas ou esvaziadas sem maiores escrúpulos. Que dirá então em realidade eminentemente agrícola, em amplo prédio cercado de propriedades dedicadas ao cultivo de tabaco, grãos e hortigranjeiros e à criação de suínos, aves e gado de corte e de leite. O acervo de certo modo reafirma a valorização que os imigrantes alemães davam à leitura e ao saber, uma vez que já traziam livros consigo na bagagem pessoal ou familiar.

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Assim, deve ter sido natural quando em pleno ano de 1900 alguns moradores decidiram-se pela criação de uma biblioteca na comunidade. Oito anos antes, em 3 de janeiro de 1892, haviam fundado a Sociedade de Canto Frohsinn (Jovialidade, em alemão), fomentando essa via artística. Ao lado do canto, em 1900 a biblioteca surgiu da mobilização dos seguintes moradores: Hermann Albrecht, Alvis Tschiedel, Johann Röhsler, Franz Hansel, Otto Wazlawovsky, Ernst Posselt, Heinrich Lang, Franz Pohl, Josef Kaulfuss e Franz Richter. Quem os menciona é o pesquisador Jones Fernando Richter, em histórico dessa localidade, elaborado em 1998.

Alguns deles já haviam integrado o grupo que criara a Sociedade de Canto Frohsinn, sendo Tschiedel inclusive o dirigente do coral. Diante da afinidade que as duas artes, a leitura e o canto, possuíam, em 1904 os sócios se reuniram e acabaram unificando os grupos, de maneira que surgiu a Sociedade de Leitura e Canto Frohsinn – e o termo “leitura” até antecedeu o “canto”, uma vez que este enfrentava momentânea crise. Como refere Richter, em 1911 a sociedade imprimiu seus estatutos, em alemão (em português o fez só em 1957), e em 1917 foi adotada a bandeira, com as cores do Brasil de um lado e as da Alemanha de outro.

Nos primeiros anos, frisa Richter, tendo em vista que a sociedade ainda não dispunha de sede própria, o acervo de livros era itinerante. Mas uma sede foi providenciada em 1933, tida desde logo como uma das mais belas do interior, e que segue em uso. Ainda que seja em boa parte de madeira, com fachada característica, tem imponência, atraindo a atenção de quem transita pela estrada de chão que cruza a localidade, a partir de Mato Leitão, pelo vale do Arroio Sampaio, que faz a divisa entre os municípios de Venâncio Aires e Sério, cuja sede dista 11 quilômetros de Linha Andréas. Outra via de acesso é pela RS422, a partir de Venâncio Aires.

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A comunidade também se voltou à prática de bocha e bolão e aos jogos de cartas. Ainda sedia as atividades do Grupo do Lar Sol Nascente, fundado em 1985, e da Sociedade de Damas Tulipa, fundada em 1978. A localidade chegou a ter igualmente Sociedade de Lanceiros e Sociedade de Tiro ao Alvo (desde 1926), bem como corridas de cavalo.

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Marco: ao lado da estrada que cruza o vale, ao longo do Arroio Sampaio, a sede da Sociedade de Leitura e Canto Jovialidade, construída em 1933, é um ponto de referência para a população de diversos municípios

Muitos exemplares em alemão do acervo são verdadeiras relíquias
O orgulho e a preocupação em preservar seu tesouro em forma de obras literárias de diferentes gêneros é expressado pelo atual presidente da sociedade – ou associação, como também é chamada pelos moradores –, o orientador agrícola Márcio Henkes, 49 anos. Natural de Arroio Bonito, interior de Mato Leitão, há 25 anos ele reside em casa vizinha à sede da entidade. Assim, passou a testemunhar o apreço dos moradores pelo local, ao lado da esposa, Eara Luísa Luft Henkes, natural de Sampaio, em Mato Leitão, e professora na localidade próxima de Vila Deodoro, e dos filhos Kelvin, 21 anos, e Franklin, 13. Além de congregar os moradores venâncio-airenses, a sociedade atrai residentes em Sério, cujo território se situa já do outro lado do Arroio Sampaio, a poucos metros da sede, e das localidades próximas de Santa Clara e até de Boqueirão do Leão.

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Como o acervo começou a ser formado ainda ao final do século 19, envolve inúmeras obras em língua alemã daquela época, tanto adquiridas por iniciativa dos associados quanto recebidas em doação, de diferentes origens, inclusive da Alemanha. Um dos períodos mais complicados foi o da proibição à fala e à leitura em alemão da época do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas, na década de 1930, e durante a Segunda Guerra Mundial. O acervo chegou a ser confiscado e levado ao porão do Judiciário em Venâncio Aires, onde quase metade dos volumes foram seriamente danificados por ocasião de uma enchente, além da má acomodação, em local úmido e pouco ventilado. Corre o boato entre os moradores de que em certo momento uma comitiva foi organizada e ela literalmente resgatou os livros do porão do Judiciário, trazendo-os de volta aos cuidados das famílias na localidade.

Ao longo das décadas seguintes, se a biblioteca já não chegava a atrair tantos leitores com fluência na leitura em alemão, ainda assim ia ganhando novos exemplares, inclusive de doações feitas por pessoas, famílias e até entidades alemãs. De maneira que, atualmente, o acervo, acomodado em estantes com portas de vidro ou de MDF, segue imponente, novamente com cerca de 4 mil volumes, um legado do esforço dos membros da associação ao longo de 12 décadas. Conforme Henkes, a sociedade permanece com 220 associados em dia, entre honorários (assim ditos por serviços prestados à entidade ou ex-dirigentes), liberados (os com mais de 60 anos) e ativos, que pagam uma anuidade de R$ 100,00 para desfrutar do direito de usufruir das dependências e das atividades promovidas.

Entre elas estão tradicionais festejos, como a Festa Intercomunidades, que terá sua 38ª edição em 2020, e cuja receita auxilia na manutenção dos ambientes sociais. Estes ainda envolvem os espaços de baile e danças, de jogos de cartas, bolão, bocha e futsal, com uma moderna quadra em ginásio coberto, cuja construção iniciou-se em 1996, segundo Richter, e, em anexo, o Estádio Odilo Richter, em homenagem a um comerciante e transportador local. Na quadra e no campo atua o Grêmio Esportivo Avante, cuja sala de troféus evidencia o bom desempenho das equipes em campeonatos e torneios.

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Um patrimônio aos cuidados de Iolandi
O arquivamento e a estruturação do acervo atual da biblioteca da Sociedade de Leitura e Canto Jovialidade há 15 anos estão sob o encargo de uma professora aposentada, Iolandi Flávia Schmidt, que reside a cerca de dois quilômetros da sede e se desloca com frequência a fim de cuidar do local. Antes dela, atuaram como bibliotecários Otto Wazlawovsky, Otto Albrecht e Rudiberto Pohl e Carlos Henrique Schubert, que zelaram pelo bom funcionamento do local. O pesquisador Jones Fernando Richter também respondeu por essa tarefa por um tempo.

Conforme Iolandi, já em seu tempo de atuação em sala de aula, como colega de Eara, esposa de Henkes, em escola de Vila Deodoro, localidade próxima, tinha enorme apreço e orgulho pelo acervo literário. E à medida que passou a ter mais tempo para cuidar da catalogação, ocupou-se com prazer dessa tarefa. Segundo ela, quando visitantes da Alemanha chegam ao local, ficam muito impressionados com os títulos disponíveis, e em alguns casos enfatizam esse valor ao mencionar que muitos dos volumes já seriam raros, hoje, até na Alemanha.

E, no entanto, seguem preservados no interior de Venâncio Aires, longe de centros maiores. “Alguns títulos certamente hoje valeriam muito dinheiro, embora a gente nem saiba quais os que teriam esse valor e como mensurar isso”, comenta. Por isso, inclusive, muitos estudantes universitários em níveis de graduação ou de pós-graduação desenvolvem estudos de conclusão, dissertações ou teses sobre títulos do acervo da biblioteca. “A gente sempre acolhe bem a todos”, frisa.

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Mas ressalta que a sociedade optou por já não mais emprestar volumes, sob nenhuma hipótese, diante do histórico de que muitas obras, em momentos anteriores, foram cedidas e, como de praxe, nunca mais voltaram. Isso envolveu inclusive um dos principais livros de registros de empréstimos, ou de movimentação dos associados, que também sumiu. “Por tudo isso, acabamos por ter de ser mais rígidos e muito mais criteriosos”, comenta o presidente da sociedade, Márcio Henkes.

Dona Iolandi Schmidt hoje atua como bibliotecária, zelando pelo acervo e recebendo visitantes, inclusive do exterior. Foto | Lula Helfer

Animadas tardes
Durante a semana, em diferentes dias, quem chega à sede da sociedade Jovialidade depara-se com a cena clássica de interior: grupos de homens e também de senhoras distribuídos por mesas e ocupados em jogos de baralho. Foi o que se viu em janeiro, quando Sérgio Eichler, 74; Astor José Richter, 73; Arnoldo Schubert, 65; e Ewaldo Richter estavam instalados em uma mesa no salão maior do local. Já em anexo duas mesas estavam ocupadas por senhoras: Hilária Albrecht, Leonilda Schmitt, Claci Watte Richter, Sulita Wazlawovsky, Lovani Elisa Serafini, Hedi Eichler, Leni Schubert e Acelga Piener curtiam a aposentadoria em animados jogos. No sobrenome, revelavam as origens familiares e de parentesco com muitos dos fundadores da sociedade.

O nome da localidade
O oitavo distrito de Venâncio Aires, do qual Linha Andréas faz parte, é uma região muito aprazível, estendida ao longo do Arroio Sampaio. Conforme o pesquisador Jones Fernando Richter, muito provavelmente o nome da localidade homenageia o tenente-general Francisco de Souza Soares de Andréa, Barão de Caçapava, que governou a Província do Rio Grande do Sul entre agosto e novembro de 1840 e uma segunda vez, de abril de 1848 a março de 1850. Ainda que os lotes da localidade tenham sido ocupados com imigrantes alemães a partir de 1876, num total de 26 famílias pioneiras, a região poderia ter sido batizada em alusão ao governante no período em que as primeiras famílias de alemães chegaram à região de Santa Cruz do Sul, em 1849.

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