Não era um painel de led, nem um quadro verde, nem um cartaz digitado impresso. Era um papelão, alguma sobra de embalagem, e lá estava o recado, manuscrito, de que ali se vendiam melancias provenientes de Encruzilhada do Sul. (Antes que a patrulha, a tropa do politicamente correto venha ao ataque, deixo claro que admiro profunda e respeitosamente essa linguagem do povo, de quem precocemente largou a caneta para pegar no cabo da enxada.)
O tempo da melancia é um pouco tempo de felicidade. Quando, em dezembro, se armam as primeiras tendas, os primeiros improvisados barracos, sabemos que logo virão esses inquestionáveis frutos com a marca regional, colhidos em Encruzilhada do Sul, no Passo da Areia, no Albardão, nesses recantos que nos são próximos e nos asseguram a honestidade e o sabor. Se lado a lado estivessem duas tendas – uma com melancias de, sei lá, Goiás, outra do Passo da Areia –, eu não teria dúvida alguma em saber onde comprar. Por isso, o cartaz anunciando serem melancias de Encruzilhada do Sul é tão significativo, a procedência garantiria a qualidade.
Há muitos anos compro deles: na Independência, na São José, na Dona Carlota e outros pontos mais. Neste ano, meu fornecedor estava instalado na Felipe Jacobus. De uma simplicidade, de uma sinceridade, de uma recatada simpatia, era um prazer chegar lá e sempre ser bem recebido. Disse-me que suas melancias vinham do rio-pardense Passo da Areia e que a produção era dele mesmo, da sua família. No olho, sem balança, sem bússola, estipulava os preços, esta é de 10, esta outra é de 15, tem essas de 20…
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Certo dia, perguntei sobre como se produz, quando se planta, se usava adubo, quanto tempo leva para a fruta estar no ponto, essas questões aí. Eu não quis entristecê-lo, mas estava legislando em causa própria. Ele poderia ver em mim um potencial concorrente. E relato o causo.
Plantei dois pés de melancia, isso quando os produtores já estavam se preparando para a colheita. Os dois estenderam suas ramas, se enfeitaram de flores amarelas e me encheram de esperança. Passado um tempo, aquelas centenas de flores se transformaram em três frutas, uma um pouco maior, outra média e uma terceira já subnutrida de nascimento. Todo dia eu as reparava, apenas a primeira prometendo algum resultado.
Para meu desencanto, após uma noite de chuva implacável, cheguei e vi que a minha melancia predileta estava literalmente oca. Alguém furou a base e limpou a polpa vermelha, transformando em imensurável frustração a minha incursão agrícola. Perguntei ao meu fornecedor que bicho poderia ter feito isso. Ele me disse que ou ratão, ou gambá. Como chovera muito, perguntei se o gambá poderia ter dormido dentro da minha mais promissora produção. Aí ele me olhou de lado e perguntou qual eu iria levar.
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Tenho quase certeza de que minha crônica não alcançará esses trabalhadores, mas meu propósito é tributar-lhes uma homenagem e expressar minha gratidão pela doçura que injetam na vida em tempos de tanta aflição, de tanto desencontro e tantas amarguras. E que façam como os cantadores de reis, que, na despedida, renovam a promessa: Este terno se despede até o ano que vem!
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