Santa Cruz do Sul

Médico que atuou no incêndio da Kiss e sobrevivente que decidiu cursar medicina fazem plantão juntos no HSC

Em 27 de janeiro de 2013 – há 11 anos, um mês e um dia – o coração do Rio Grande do Sul, Santa Maria, sofreu um duro golpe com o incêndio na Boate Kiss durante a madrugada. O Brasil acordou enlutado com a perda de 242 vidas (quase 90%, jovens de 18 a 30 anos) e mais 636 feridos. Para aqueles que tiveram que encarar de perto o sofrimento daquela noite ou sepultar um familiar ou um amigo, a Kiss deixou uma ferida aberta que perpassa o corpo. Restou a cada sobrevivente encarar o medo, a angústia e as dores.

Gustavo Cauduro Cadore, 42 anos, carrega consigo as lembranças daquela noite, a qual ainda lembra nitidamente. Com queimaduras em quase 40% do corpo, o estudante foi um dos primeiros entre os 57 pacientes transferidos para o setor de queimados do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. A operação de transporte dos feridos – que contou com helicópteros da Força Aérea Brasileira (FAB) e avião da Brigada Militar – foi coordenada pelo médico Carlos Fernando Drumond Dornelles

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Mais de uma década depois, distantes de Santa Maria, Cadore e Dornelles cruzaram caminhos. No entanto, desta vez, não mais como paciente e socorrista, e sim colegas de trabalho. Estudante do 9º semestre de Medicina pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Cadore realizou um plantão no Hospital Santa Cruz (HSC) com Dornelles, médico emergencista. Durante 12 horas trabalharam juntos, pela primeira vez, em atendimentos clínicos e alguns casos de trauma, situações rotineiras do Pronto Atendimento.

O plantão começou tranquilo, mas foi se intensificando à medida que as horas passavam. Terminou de maneira agitada. Durante a noite, atenderam um paciente em parada cardíaca, e Cadore precisou auxiliar.
Entre um paciente e outro, o aprendiz de médico pôde ver o profissional na condução dos trabalhos. Chamou a atenção de Cadore a tranquilidade e experiência de Dornelles ao longo da jornada, que se iniciou às 19 horas do dia 22 e terminou às 7 horas do dia 23. A ficha do significado do momento demorou a cair para o aluno. “Foi emocionante e gratificante”, disse.

O momento também foi gratificante para Dornelles, que contribuiu na formação do futuro colega. Não escondeu a admiração pelo estudante e sua trajetória após o incêndio. “O Gustavo é um exemplo de superação. Ele deu a volta por cima e está fazendo algo incrível”, afirmou.

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O encontro foi registrado em uma foto enviada à jornalista Daniela Arbex, autora do livro Todo dia a mesma noite – A história não contada da boate Kiss. Comovida, a escritora – que narrou em sua obra a história de Cadore e Dornelles, além de outros sobreviventes do incêndio – compartilhou a imagem em suas redes sociais. “Eu estou emocionada até agora. Grata. Pensando na sorte que os pacientes terão ao serem tratados por médicos tão humanizados como Dornelles e Gustavo. Ganhamos nós e a medicina”, escreveu.

Cicatrizes

No fim de 2021, enquanto acontecia o julgamento do incêndio – durou dez dias e terminou com a condenação de quatro réus –, Gustavo Cadore e Carlos Dornelles começaram a conversar pelas redes sociais. O médico ficou comovido ao descobrir que teria como colega de trabalho uma pessoa que, há 11 anos, havia sido socorrida pela sua equipe. “Ainda estou impressionado com as reviravoltas que a vida dá”, comentou. A medicina era um sonho antigo de Gustavo. 

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O primeiro encontro só ocorreu em 2023. Voltaram a se reunir algumas vezes e chegaram a participar de uma palestra sobre o incêndio na Unisc. De testemunhas de uma das maiores tragédias vividas no Brasil, os dois viraram amigos.

Começaram os plantões do estudante de Medicina e, no quinto, os dois trabalharam juntos pela primeira vez. “Nunca me passou pela cabeça estar aprendendo com ele e atender junto”, admitiu Cadore. Toda vez que se reúnem, Dornelles traz detalhes do longo dia 27 de janeiro de 2013. Conforme o profissional, há muitas histórias a serem contadas. “Acho extremamente importante ele entender tudo o que aconteceu e, principalmente, saber do trabalho dos profissionais da área da saúde, socorristas, voluntários e forças militares que atuaram incansavelmente e arriscando suas vidas para poder salvar o maior número de vítimas”, explicou.

Dias após o primeiro encontro, os dois voltaram a se cruzar nos corredores do HSC e conversaram sobre a repercussão do momento. “Toda vez me emociono”, admitiu o emergencista. Para ele, o futuro médico será um excelente profissional que, diante de tudo que viveu após o incêndio, poderá dar um tratamento diferenciado aos pacientes. Com a voz embargada, Cadore abraçou o amigo e confessou: “Deus coloca as pessoas certas na nossa vida. E o Carlos é uma dessas”. 

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Passados 11 anos, cada um carrega suas cicatrizes. Nos braços e nas mãos de Gustavo estão os ferimentos provocados pelas queimaduras, além de uma tosse contínua. “Até hoje não sei como me queimei”, confessou.

Em Carlos, as lembranças são a principal ferida. Não só para ele, mas para todos os profissionais e voluntários que testemunharam a tragédia e as suas consequências. “Nós também fomos vítimas da Kiss, assim como os familiares e amigos que perderam alguém. Todo mundo que se arriscou, que estava lá, carrega uma angústia, um sofrimento. Todos sofreram e sofrem ainda com isso”, afirmou. Enquanto conversavam, a televisão informava que o segundo julgamento do caso aguardava definição, após as condenações terem sido anuladas. “Acho que nunca teremos uma condenação”, admitiu Gustavo Cadore. Os dois temem que o esquecimento possa ser o estopim de uma nova tragédia.

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Entrevista – Daniela Arbex Jornalista e escritora

Os eventos que resultaram na morte de 242 pessoas em Santa Maria foram contados pela jornalista Daniela Arbex no livro Todo dia a mesma noite. Entre as testemunhas ouvidas pela escritora, autora do best-seller Holocausto Brasileiro, estão Gustavo Cadore e Carlos Dornelles. Daniela passou centenas de horas ouvindo sobreviventes, familiares das vítimas e integrantes das equipes de resgate. O livro serviu de inspiração para uma série de mesmo nome, lançada pela Netflix uma década após o incêndio. A autora conversou com a Gazeta do Sul sobre a repercussão da foto de Cadore e Dornelles e a necessidade de a tragédia não cair no esquecimento.

Daniela Arbex Jornalista e escritora | Foto: Divulgação

Gazeta – Como foi ver os dois trabalhando juntos na mesma profissão?

Daniela – Foi incrível. O Dornelles me impressionou muito pelo trabalho dele, o ser humano que ele é. Quando eu conheci o Dornelles e vi tudo que ele fez na Kiss, sendo o primeiro socorrista a entrar e depois cuidar de todo o transporte aeromédico dessas vítimas, desses feridos. Como ele conseguiu fazer isso com extrema rapidez e cuidado ao transportar 57 pessoas. Foi incrível o trabalho dele. 

Depois eu conheci o Gustavo, um sobrevivente que conseguiu enfrentar tantos obstáculos, ficou tanto tempo internado, passou por tantas cirurgias. E ele conseguiu ressignificar isso. Tenho um carinho muito grande pelos dois. Tanto é que eles foram personagens do Todo dia a mesma noite e da série que a gente lançou na Netflix, os dois estão ali representados. 

Quando eles se reencontraram num plantão e se lembraram de mim, tiraram a foto e me mandaram, naquele momento foi muito emocionante. Eu fiquei muito grata. E fiquei pensando na grandeza mesmo da vida, que reuniu esses dois num momento tão bonito, depois de tanto sofrimento. 

Então, eu fiz aquele post muito emocionado, para falar disso, e eu acho que esses exemplos tocam as pessoas, inspiram. Foi o que aconteceu, acabou viralizando, e o País está encantado. Fico muito feliz de poder, de alguma forma, continuar contando essas histórias, porque esses personagens entram para a vida da gente e não passam; eles ficam. 

Gazeta – Tanto o livro quanto a série trouxeram o caso novamente para discussão. Por que é importante que o incêndio na Boate Kiss não caia no esquecimento? 

Daniela – Em 30 anos de carreira, sempre trabalhei denunciando as violações de direitos de populações vulnerabilizadas. E nos últimos dez anos tenho trabalhado na construção da memória coletiva do País. Exatamente por esquecer e negar a história. E se  esquecemos, repetimos os erros do passado que nos trouxeram até aqui.  Eu falo que o silêncio só interessa aos autores, não interessa às vítimas, ou aos familiares das vítimas, ou aos sobreviventes. Então, a gente precisa contar essas histórias, porque se não é contada, é como se não tivesse existido. E a gente não vai deixar que caia no esquecimento.

Assista o Podcast Papo de Polícia com o médico Carlos Dornelles. Na ocasião, ele detalhou episódio com Gustavo Cadore

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Julian Kober

É jornalista de geral e atua na profissão há dez anos. Possui bacharel em jornalismo (Unisinos) e trabalhou em grupos de comunicação de diversas cidades do Rio Grande do Sul.

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Julian Kober

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