Em 2023, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, maior honraria concedida a um autor, publicara o romance Dedico a você meu silêncio, lançado no Brasil em novembro de 2024 pela Alfaguara, em tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, como um importante fato cultural na reta final do ano. Acabou por constituir a derradeira manifestação de um gigante das letras no universo da ficção. No último domingo, Llosa morreu aos 89 anos, em Lima, capital do Peru, país que ele ajudou a colocar no mapa em termos de debate intelectual.
Llosa nasceu em 28 de março de 1936, em Arequipa, no sul peruano, cidade cercada pela cordilheira dos Andes e que sempre se ufanou de ser a terra natal de um autor dessa magnitude. Ainda que o escritor tivesse optado por viver longe do Peru, dividindo-se entre a Espanha e os Estados Unidos, onde lecionara. Cedo revelou pendor para a escrita, e com pouco mais de 20 anos publicou o romance Os chefes, em 1959, logo seguido de Batismo de fogo, em 1963. Mas foi com Conversa na Catedral, tido como a sua obra-prima, de 1969, que se firmou em definitivo na cena cultural.
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Logo foi citado no chamado boom da literatura no continente, ao lado de seu grande amigo Gabriel García Márquez, colombiano, autor de Cem anos de solidão, outro Nobel, bem como do mexicano Juan Rulfo e do argentino Julio Cortázar, entre outros. De García Márquez foi próximo, mas acabou por romper com ele. Em virtude de inclinações políticas (o colombiano se manteve fiel à esquerda, enquanto Llosa tornou-se liberal, de centro-direita), e também porque Márquez teria dado em cima da mulher do peruano.
Tanto Llosa manifestou engajamento que se candidatou à presidência do Peru, em 1990, perdendo a eleição para Alberto Fujimori. A experiência malograda o frustrou, e se retirou da cena política. Porém, nunca deixou de se posicionar em artigos e ensaios.
Com sua partida, no domingo, fica sua ampla, variada e versátil obra ficcional e ensaística. Romances recentes, como Travessuras da menina má, O sonho do celta, Cinco esquinas e Tempos ásperos evidenciam o virtuosismo de Llosa em compor belas e pungentes histórias.
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Em Dedico a você meu silêncio, a certa altura, a personagem Cecilia pergunta ao protagonista: “Você não acredita mais que algum dia os problemas do país serão resolvidos, Toño?”, referindo-se, claro, ao Peru. A resposta: “Algum dia, pode ser. Mas nem você nem eu veremos isso, Cecilia. Os nossos problemas são grandes demais, não têm uma solução tão fácil”. Agora, nem Llosa estará mais aí para testemunhar. E talvez os dilemas do Peru sejam, cada vez mais, dramas do mundo todo.
Em 2010, no dia 7 de outubro, fora anunciado como ganhador do Nobel. Uma semana depois, no dia 14, desembarcava em Porto Alegre como a atração do Fronteiras do Pensamento. A Gazeta esteve lá para acompanhar as atividades, tanto a coletiva que concedeu na tarde daquele dia quanto sua aplaudidíssima palestra à noite, no Salão de Atos da Ufrgs.
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No hotel, posou para as lentes do fotógrafo Lula Helfer, da Gazeta do Sul. Entre as questões que respondeu está a que a reproduzimos, em sua homenagem, abaixo. A entrevista completa está publicada no livro Entrevistos: conversas com escritores – Volume 1, deste jornalista, da Editora Gazeta.
Descansa em paz, nobre intelectual!
RELEMBRE: A Gazeta esteve lá: na palestra de Mario Vargas Llosa
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Uma pergunta
O que o senhor pensa da literatura hoje é o mesmo que pensava quando começou a escrever?
Mario Vargas Llosa – Seguramente, as minhas ideias mudaram. Por exemplo, nos anos 1950, quando eu era estudante universitário, segui muito as teses de Sartre sobre a literatura comprometida e me seduziu muito a ideia de que a literatura poderia ser um instrumento de transformação histórica de uma sociedade. O ensaio de Sartre, traduzido como O que é a literatura?, me causou uma enorme impressão e me deu, digamos, muito alento em minha vocação. As ideias de Sartre para um jovem, em um país subdesenvolvido, com muitos problemas políticos, sociais, econômicos, que se dedicava a escrever, eram muito estimulantes, porque ele dizia que a literatura era, por um lado, uma arte, porém por outra parte a literatura era uma maneira de intervir na vida pública, na vida cívica, defendendo as melhores opções, de maneira que não teria que haver nenhuma má consciência quando alguém se dedicava a fazer literatura ou qualquer tarefa criativa, porque essa tarefa criativa podia ser uma arma para lutar contra as injustiças.
Eram ideias muito estimulantes. Porém, com o passar do tempo, foi possível ver que a realidade não o confirmou. Essas ideias de pronto poderiam ser usadas para escrever ensaios políticos ou filosóficos, e por outro lado é evidente que a literatura não produz mudanças históricas imediatas e não pode ser convertida, de maneira deliberada, em um instrumento de ação política. Essa é uma ideia na qual não creio. Desde logo não creio que a literatura cause impactos muito imediatos na vida. Creio que atua de maneira lenta e indireta, através das consciências, da sensibilidade que ajuda a formar, e também de uma maneira imprevisível, que não se pode, digamos, planificar, programar. Uma pessoa não pode sair escrevendo e pensar: eu vou provocar essas mudanças na sociedade. Isso é uma ingenuidade.
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Mas creio que a literatura, sim, tem um efeito sobre a sociedade, que não é governável pelo próprio escritor, mas ela provoca na sociedade um desassossego, uma espécie de mal-estar perante o mundo tal como é, de que sempre resultam atitudes críticas. Creio que a literatura estimula muito a atitude crítica frente à vida, frente ao mundo, frente a todos os aspectos da realidade. E essa é seguramente a razão pela qual todos os regimes políticos autoritários, totalitários, sem nenhuma exceção, têm estabelecido sistemas de censura, de controle da literatura, porque viram nela, intuitivamente, um perigo. E creio que é verdade, creio que a literatura é um perigo para qualquer ditadura.
A literatura estimula sempre uma atitude forte perante a vida, perante a realidade. Nesse aspecto, sim, creio ter mudado muito. Seguramente também, a partir de um momento, o humor, de que eu desconfiava muito na literatura, por culpa de Sartre, que, seguramente, foi um homem muito sério, porque não há um sorriso, não há uma gargalhada, não há nada, é o homem mais sério do mundo na hora de escrever, não?
Assim, creio que ele fez saber a nós, discípulos, que, se queríamos fazer literatura séria, não podíamos usar o humor. Descobri o humor com uma novela, que se chama Pantaleão e as visitadoras, e vi que estava totalmente equivocado, que o humor poderia ser um recurso riquíssimo para contar certas histórias, que até a única maneira de contá-las poderia ser o humor. Muitas coisas mudaram, mas não em uma ideia básica: de que a literatura é importante, imprescindível, que ela faz com que a vida seja mais vivível e que, sem literatura, a vida seria provavelmente invivível. Isso é o que pensei quando descobri a leitura e sigo pensando na mesma direção agora.
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