Mais de cem dias se passaram e as marcas ainda podem ser vistas em muitos pontos por onde a água, carregada de barro, avançou durante a catástrofe climática. A chuva torrencial de 29 de abril e os dias que se seguiram jamais sairão da memória dos moradores da região Centro-Serra, sobretudo dos que foram diretamente atingidos. Sobradinho, o município-mãe, cidade-polo regional, viu o Arroio Carijinho transbordar, alagando bairros e adentrando feroz as ruas adjacentes, levando consigo parte de residências e estabelecimentos comerciais, arrastando carros ou deixando-os submersos. O cenário foi quase inimaginável diante do contraste nos verões, quando o arroio costuma enfileirar a água em rasas lâminas, junto com seus afluentes.
As chuvas intensas que caíram sobre a região tiveram poucos momentos de trégua entre o fim de abril e o início de maio. Em apenas dois dias (29 e 30 de abril), as precipitações superaram os 400 milímetros em Sobradinho. Na semana seguinte, o acumulado já era o dobro.
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O fluxo da cidade foi alterado em razão das pontes danificadas e submersas. As estruturas do Bairro Vera Cruz e no Acesso Euclides Bento Pereira foram destruídas; as pontes que ligavam ao Bairro Rio Branco e ao Maieron ficaram obstruídas por alguns dias. A primeira foi liberada ao trânsito com restrições e continua sob acompanhamento. A outra sofreu avarias e teve suas cabeceiras destruídas.
Já a ponte que liga o Centro ao Bairro Baixada, também com estrutura danificada devido à força da correnteza, teve a passagem interditada para veículos por semanas até ser reaberta com medidas paliativas, e permanece sob monitoramento e restrições. Somaram-se aos danos pontes pênseis (pinguelas), bueiros e calçamentos avariados na cidade, além de pontilhões no interior. Também houve diversos estragos nas estradas que ligam as localidades e prejuízos no campo, com a erosão do solo.
Pelo menos 1,8 mil pessoas – cerca de 450 famílias – foram atingidas pelas consequências das intensas chuvas em Sobradinho. Destas, segundo a Defesa Civil e Assistência Social, em torno de 40 tiveram suas casas totalmente arrasadas e quase 80 ficaram com as residências parcialmente destruídas, além de mais de 300 famílias afetadas pelos alagamentos.
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Nos primeiros dias, cerca de 150 pessoas buscaram alojamento no abrigo temporário junto ao Salão Paroquial Católico, onde receberam os primeiros atendimentos, refeições e donativos. Outras tantas foram para casas de familiares e amigos. Ainda em maio, as fortes chuvas retornaram, provocando novamente estragos em algumas localidades. Isso fez com que pontos do município necessitassem de novos trabalhos para liberação do acesso a comunidades e propriedades isoladas.
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Além de residências e infraestrutura urbana e rural, prédios públicos e empresas contabilizaram danos e perdas. Com estimativa de prejuízo de aproximadamente R$ 1 milhão, a empresa de Vanderlei e Dulce Schweighofer retomou algumas de suas atividades cerca de uma semana após a enchente. A Metalúrgica Schweighofer, que fica junto à Rua Independência, em Sobradinho, sofreu com mais de um avanço da água: foi uma cheia durante a madrugada de 30 de abril e a mais forte na tarde daquele dia.
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As marcas da água e do barro contrastaram com a cor das paredes e do piso, agora quase apagadas pela limpeza e pela nova pintura. O que não se apagará da memória, segundo o casal, são as imagens do que presenciaram naqueles dias. A correnteza avançou pelos portões dos fundos da empresa, tirando-os do lugar. A água alcançou dois metros de altura.
Em 25 anos de empreendimento, Vanderlei e Dulce nunca haviam passado por algo semelhante. Foram dois meses com parte da loja fechada, onde vendiam ferragens, ferramentas e outros itens, mas com intenso movimento no pavilhão da metalúrgica, reerguendo a estrutura física e retomando encomendas. No local havia material em estoque e peças prontas ou em fase de conclusão para entrega, mas que também foram danificadas pela enxurrada.
Com a retomada das encomendas, a rotina, aos poucos, também foi voltando ao normal. A família e a equipe ganharam reforço nos primeiros dias, com diversos voluntários que se somaram na limpeza dos espaços. Para reabertura da loja, aguardaram a chegada de novas remessas de produtos. O que foi possível salvar da enchente comercializaram com descontos, informando o motivo.
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Além da estrutura do prédio que abriga a metalúrgica, diversos equipamentos necessitaram de reparos, assim como três veículos cujos motores ficaram embaixo d’água. O escritório, com muitos papéis e computadores, também teve prejuízos.
Passados mais de cem dias desde que ocorreu o episódio, Dulce ressalta que não viu o tempo passar. “Foi muito trabalho, a gente não viu passar, ficamos muito envolvidos. Mas aquela imagem, de quando chegamos do outro lado da ponte e olhamos para cá e vimos toda aquela água, isso não sai mais. A imagem de quando conseguimos entrar aqui e estava cheio de barro, tudo revirado, era muito triste”, relata.
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No escritório da Metalúrgica Schweighofer, em meio à lama, uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição permaneceu no lugar. Para a família, é a representação da fé e da força empreendida para seguir em frente. “Foi um presente da minha mãe a santinha com um tercinho, quando nós começamos com a empresa. Ela só virou de lado, mas não foi embora. Ficou em cima da mesa”, ressalta Vanderlei Schweighofer.
O casal Vanderlei e Dulce explica que ainda há questões a serem refeitas, mas priorizaram as entregas. “Algumas coisas a gente foi improvisando, não se tinha condições de refazer tudo de imediato. Então fomos fazendo aos poucos. Ainda vai até o fim do ano para deixar tudo em ordem”, analisa o proprietário.
Nos dias da catástrofe, entre o fim de abril e o início de maio, segundo o casal, não conseguiram entrar na empresa durante a madrugada, pois não havia como acessá-la. Apenas pela manhã conseguiram entrar, ver de perto a situação e iniciar a limpeza.
“Estávamos dentro e começou a chuvarada de novo. Na hora de sair, já precisamos do auxílio da retroescavadeira, pois a água tinha avançado novamente. Era uma tristeza olhar e não saber por onde começar, porque tudo estava revirado, muita coisa tinha ido embora com a água”, ressalta Dulce.
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lou o Estado atingiu diversos bairros e localidades do interior, levando histórias de vida, de trabalho, dedicação e muitas memórias. Valdomiro Garcia Lopes, de 50 anos, natural de Sobradinho, e Lizete Neu, de 51, viram a residência onde moram há mais de 15 anos se desconfigurar com o avanço da água que invadiu a residência após o muro da divisa dos fundos ceder.
Juntos há quase três décadas, nunca presenciaram algo semelhante. “Até então nunca havia entrado água no pátio. Nunca esperávamos passar por isso. Naquela madrugada do dia 30 entrou água, em torno de uns 50 centímetros dentro de casa, e a maioria dos móveis estragou. Durante o dia a gente retornou, limpamos o que conseguimos e tiramos os móveis que havíamos perdido. Enquanto estávamos aqui ainda, nesse trabalho, durante a tarde, a água começou a subir novamente”, recorda.
“Fechamos tudo e nos retiramos. Quando voltamos já não tinha mais nada”, revela emocionado o morador da Baixada, bairro fortemente atingido em Sobradinho. “A nossa parte aqui não foi o arroio que veio da direção do asfalto, foi onde o arroio estourou lá em cima, perto da Rua Conde de Porto Alegre, e veio em direção a essa parte mais baixa.”
Relembrar aqueles dias, segundo ele, é doloroso. Valdomiro e a esposa encontraram forças junto aos demais moradores e voluntários do município, assim como de outros lugares, que prestaram apoio e formaram uma corrente solidária.
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O morador mencionou, contudo, que esperavam mais auxílio por parte dos entes públicos, especialmente em relação à estrutura material para reconstrução. “A gente está construindo com o dinheiro que conseguimos arrecadar em campanha, um pouco do seguro da casa (que ficou aquém do esperado em razão dos danos), e alguma coisa que tinha guardado. Mas ajuda mesmo, estrutural, a gente não conseguiu”, menciona. Dos auxílios anunciados pelo governo, a família recebeu a parcela única de R$ 5,1 mil e buscou o Aluguel Social até conseguir voltar ao antigo endereço.
Da mobília da residência, Valdomiro Garcia Lopes conta que sobrou apenas a televisão, por ficar mais alta na parede, e a geladeira, encontrada a muitos metros de distância. “A gente achou a geladeira 300 metros para baixo, pois se foi com a água. Não tinha aberto nem entrado água, tanto que tinha três dúzias de ovos dentro dela e não quebrou nenhum. A comida estava conservada, ainda tinha gelo dentro. Foi a única coisa que a água levou que a gente conseguiu salvar”, recorda.
Na manhã daquela terça-feira, quando faziam a limpeza da casa sem imaginar que a água invadiria novamente, conseguiram resgatar no carro alguns documentos. Mais tarde, com a queda do muro do campo aos fundos da residência, a água invadiu a moradia e levou o que encontrou pela frente, deixando apenas parte da estrutura em pé.
No primeiro dia, abrigados junto ao Salão Paroquial, ao conversar com a equipe da Gazeta, Lizete afirmou que o que havia restado podia ser visto em duas sacolas. Nelas estavam dois cobertores e os documentos, além da chave da casa em mãos. “Em 29 anos trabalhando, juntando as coisas, e em uma tarde perder tudo, é duro”, comentou Valdomiro emocionado.
Segundo ele, apesar de ter levado um mês para fazer a limpeza do local, removendo escombros e o que se tornou lixo, e mais recentemente iniciado a fase de reconstrução, é como se a ficha ainda não tivesse caído. “Estamos refazendo com a estrutura mais forte, mas esperamos que nunca mais aconteça nada parecido, nem com a gente, nem com ninguém.”
Além das perdas materiais, as lembranças guardadas em álbuns de fotografia também se foram. “Foi tudo com a água.” Mesmo diante dos desafios, a expectativa é estar em casa de novo. “A gente perdeu muito, o que a gente trabalhou a vida inteira. Queremos poder colocar as coisas no lugar, o necessário para sobreviver”, detalhou o morador, que agradece a todos que de alguma forma os auxiliaram.
Olhando ao redor, Valdomiro recorda as imagens da água atingindo sua casa e de vizinhos, além de estruturas como a Emei e a unidade de saúde, bem como a quantidade de entulho que tomou as ruas e antes eram os bens de quem reside naquele lugar.
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