Até o momento em que foi anunciada como a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch era praticamente desconhecida do público brasileiro, realidade que talvez enfrentasse em boa parte do mundo. No entanto, bastou que ela recebesse essa distinção para que, à primeira leitura de suas vigorosas reportagens, os leitores ficassem encantados e impactados com a sua forma de escrever, na linha do jornalismo investigativo de fôlego. Agora, mais um título, o quinto, vem se juntar à sua obra nas livrarias brasileiras, o volume Meninos de zinco, que a sua editora no País, a Companhia das Letras, está lançando até o final de janeiro, em tradução de Cecília Rosas.
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De certo modo, a atribuição do Nobel foi providencial para que os brasileiros tivessem acesso à produção literária de uma escritora e jornalista dentre as mais originais da atualidade em âmbito global. Para compreender isso, bastaria a leitura de seu primeiro livro lançado no Brasil, Vozes de Tchernóbil, em 2016, em que recupera testemunhos sobre uma das maiores tragédias já registradas, a explosão do reator nuclear na antiga União Soviética, em 26 de abril de 1986, que pode ser apontado como um motivador para a derrocada da própria URSS nos anos imediatamente seguintes.
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Ainda em 2016, quando transcorriam os 30 anos desde a ocorrência de Tchernóbil, a Companhia das Letras lançara mais duas das obras de Svetlana, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético. E a eles juntara-se em 2018 o volume As últimas testemunhas, com depoimentos de personagens que haviam vivido, quando crianças, as agruras da Segunda Guerra Mundial. Natural de Stanislav, na Ucrânia, mas tendo crescido na Bielorrússia, então uma das repúblicas soviéticas, a autora está com 71 anos.
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A essas reportagens junta-se Meninos de zinco, originalmente publicado em 1991, tendo sido o segundo livro da produção autoral de Svetlana (o primeiro foi A guerra não tem rosto de mulher, de 1985). Em Meninos de zinco, lida com elementos que ainda eram relativamente próximos no tempo quando de sua elaboração: a presença das tropas soviéticas no conflito com o Afeganistão, entre 1979 e 1989, uma vez mais na reta final da derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
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Ao longo de uma década, milhares de soldados, de ambos os lados, pereceram no campo de batalha num conflito que, para o lado soviético, revestia-se de completo contrassenso. Na URSS, o discurso era de uma operação em nome da paz, mas a cada dia a população testemunhava, estarrecida, mais e mais caixões de zinco lacrados chegando de volta do Afeganistão.
Svetlana decidiu ouvir, no calor da hora, com a guerra soviético-afegã recém-encerrada na época, personagens de diversas áreas sobre o sentido (se houve) daquele embate, e sobre as terríveis marcas humanas que deixou sobre a sociedade, marcas que nunca mais se apagariam. Quando da publicação, no início da década de 90, provocou muita polêmica numa realidade soviética que se desmantelava semana a semana. E, como tal, é um documento formidável de jornalismo de qualidade realizado no tempo real de um fato de alcance global.
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“‘Como era lá, no Afeganistão?’, perguntei certa vez.
‘Cala-te, mãezinha!’
Quando ele saía de casa, eu relia as suas cartas afegãs, queria descobrir, compreender o que se passava com ele. Não encontrava nada de especial nelas, ele escrevia que tinha saudade da relva verde, pedia que a avó tirasse uma fotografia na neve e lhe enviasse. Mas eu via, eu sentia que se passava alguma coisa com ele. Devolveram-me outra pessoa… Não era o meu filho. Pois se tinha sido eu própria a mandá-lo para a tropa, ele podia ter direito a adiar o serviço militar. Eu queria que se tornasse mais homem. Convencia-o e a mim mesma de que o Exército o tornaria melhor, mais forte. Mandei-o para o Afeganistão com uma guitarra, preparei uma pequena festa de despedida. Ele convidou amigos, raparigas… Lembro-me de ter comprado dez bolos.
Só falou do Afeganistão uma vez. Estávamos no fim do dia… Ele entra na cozinha, estou a arranjar um coelho. O alguidar está manchado de sangue. Ele molha os dedos nesse sangue e fita-os. Examina-os. E diz para si:
‘Trazem um amigo meu com a barriga esmagada… Ele pede-me que eu lhe dê o golpe de misericórdia… E dei-lho…’
Dedos ensanguentados… Da carne fresca do coelho… Pega com os mesmos dedos no cigarro e vai para a varanda. Naquela noite, não me dirigiu palavra.”
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