Da pequena ilha socialista para um País de dimensões continentais, muitos médicos de Cuba que desembarcaram no Brasil, no final de 2013, têm se adaptado com facilidade ao novo modo de vida. Mesmo com o clima de incerteza em torno da permanência de cubanos no programa Mais Médicos, que os mantêm por aqui, no Vale do Rio Pardo, alguns já formaram família e até aderiram ao tradicionalismo.
Quando não está atendendo no posto da Estratégia de Saúde da Família (ESF), no Centro de Passo do Sobrado, Jesus Sotolongo Gómez, de 49 anos, usa o tempo livre, principalmente nos fins de semana, para ajudar na propriedade dos sogros, na localidade de Passo da Mangueira, seja na produção de tabaco ou na criação de porcos e ovelhas. Pouco mais de três anos após chegar ao município de 6 mil habitantes, o cubano conheceu Joice Letícia Linhares, de 25 anos, que, desde o dia 20 de dezembro, adota também o seu sobrenome.
Joice descobriu o então recém-chegado estrangeiro quando precisou de ajuda médica. Meses depois, após se reencontrarem em um jantar, os dois se aproximaram e começaram a namorar. Ao trazê-lo para conhecer seus pais, ela estranhou que o cubano fez questão de ver os animais da propriedade. “Como um médico gosta de roça? Pra mim, foi bem estranho”, recorda a esposa. Apesar de sempre ter trabalhado como médico, na cidade de Yaguajay, na província de Sancti Spíritus, onde residia em Cuba, Jesus teve contato com a agricultura quando ainda era adolescente.
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No final de 2013, o médico pousou primeiro em São Paulo, onde fez cursos de português. De lá, também guarda uma recordação marcante: de quando um colega que o acompanhava foi assaltado. “A única coisa que eu não gosto no Brasil é a violência”, afirma. Quando chegou ao Rio Grande do Sul, porém, encontrou outra realidade. Em Passo do Sobrado, conhece quase todos os pacientes e é muito requisitado. Muitos fazem questão de serem atendidos pelo “mano”, como Jesus chama a todos. “As pessoas me receberam muito bem aqui. Todo mundo é muito simples e me fazem sentir bem”, assegura.
Ao chegar à pacata cidade, o cubano ficou hospedado em um hotel – o único do município – e depois alugou um apartamento no Centro. Lá, seu entretenimento era atender os pacientes em casa, depois do expediente. Este é, segundo Jesus, seu maior dom. “É o que eu gosto de fazer. Eu vim para cá para ajudar as pessoas.” Mais de um ano depois, resolveu morar com a atual esposa. Amoroso, fez uma homenagem com azulejo na área externa da casa, com o nome do casal e da filha de Joice, Priscila, de 7 anos.
“Aqui todo mundo é livre”
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O “intercâmbio” não é novidade para Jesus. Entre 2011 e 2013, ele participou de um programa semelhante ao Mais Médicos na Venezuela. No país, com sua simpatia natural, teve um filho com uma venezuelana. Após o fim do contrato, ele retornou a Cuba e, ao contar a notícia para a então esposa, ela pediu divórcio. “Ela não deixou nem eu entrar em casa”, contou, aos risos. Pouco tempo depois, foi selecionado para vir ao Brasil e deixou os outros dois filhos cubanos, uma de 17 anos e outro de 10.
Ele não descarta voltar para a ilha. Porém, como agora está casado no Brasil, seu contrato foi estendido por mais três anos. Até lá, pretende prestar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), para ter seu diploma validado em solo brasileiro. Caso não consiga passar e tenha que voltar, Joice quer ir junto, mas Jesus duvida que ela ficaria por muito tempo. “Ela não ia se acostumar. Aqui todo mundo é livre, lá tudo é muito controlado”. Apesar de criticar políticas totalitárias do regime, o médico é grato. “O governo me deu educação, saúde e moradia. Eu não posso reclamar”, lembra.
Joice e Jesus se conheceram quando ela foi buscar atendimento
Foto: Rodrigo Assmann
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Maricel trocou o merengue pelo CTG
Assim como Jesus, a médica Maricel Rodríguez Sánchez, de 36 anos, também está mais do que adaptada. Desde a chegada, em março de 2014, ressalta que a principal dificuldade, além da saudade da filha de 7 anos que deixou em Cuba, foi a língua. E não somente a portuguesa, já que muitos moradores de Linha Santa Cruz, onde trabalha, ao serem atendidas por ela na unidade do ESF, falavam só o alemão. “Português já é difícil, agora imagina eu, entender o que os alemães falam”, sorri. Quando isso acontece, ela aciona uma enfermeira para fazer a interlocução.
Sempre com um sorriso no rosto, logo fez amigos entre seus colegas de serviço e com vizinhos da localidade. Acostumada com os ritmos caribenhos, como salsa e merengue, Maricel recebeu o convite para fazer um curso de dança gauchesca. Mesmo sem vestido de prenda e sem parceiro, não pensou duas vezes e topou o desafio. Durante as aulas, conheceu seu par e alugou o traje típico. Poucos meses depois, formou-se no curso. “Se podemos conhecer uma nova cultura, temos que aproveitar.”
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Maricel garante que se sente em casa. Entretanto, é no verão que ela mais tem saudades da ilha e seus litorais paradisíacos. Conforme ela, o clima nesta época do ano é semelhante ao de Cuba no ano inteiro. Em Matanzas, província de Cárdenas, depois de prestar atendimentos aos pacientes, ela aproveitava as folgas nas praias de areia branca e águas cristalinas.
De Cuba, ela trouxe poucos objetos na bagagem. Um deles é a imagem da padroeira dos cubanos, a Nossa Senhora da Caridade do Cobre. “Rezo para ela e peço saúde aos meus parentes que estão lá”, frisa. Em Linha Santa Cruz, Maricel mora com o marido, que conheceu na Venezuela, quando prestou serviço semelhante ao Mais Médicos, e com duas enteadas, uma de 9 anos e outra de 16.
Sem o Revalida, saída é voltar
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Além de receitar medicamentos e cuidados, Maricel também costuma dar conselhos para relaxar seus pacientes. A médica se espanta com a falta de valorização dos brasileiros por seus pontos turísticos. Ela já visitou Gramado no inverno e fez o passeio de Maria Fumaça, em Bento Gonçalves. “As pessoas daqui não conhecem suas próprias belezas, estão sempre com pressa e só pensam em trabalhar”, observa.
Mesmo salientando que o baixo salário que os cubanos recebem é um dos grandes males da ilha e acreditando que, com a retomada das relações bilaterais com os Estados Unidos, essa realidade pode começar a mudar, ela não tem dúvida: “Os ideais socialistas sempre estarão presentes em Cuba”. Ao receber a notícia da morte de Fidel Castro em dezembro, Maricel disse que lamentou e considerou o falecimento “uma grande perda”. Apesar do amor pela terra natal, ela gostaria de ficar no Brasil, mas não foi aprovada no último Revalida. Sem a permissão para atuar como médica no País, em abril, quando acabar seu contrato, ela deve retornar.
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