Multi. Esse é um prefixo que se assenta muito bem à trajetória do escritor português Afonso Cruz, 53 anos, um dos principais autores de sua geração em toda a literatura elaborada nessa língua. Além de uma intensa produção escrita, que já ultrapassa a 40 títulos, vários deles premiados, dedica-se à música, ao cinema, à publicidade e a outras eventuais áreas.
Ele consta como uma das atrações de destaque na programação da 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, que acontece até a próxima quarta-feira, dia 20, na Praça da Alfândega, no Centro Histórico da capital. Por lá, esteve no primeiro final de semana do evento, participando de mesa-redonda e também autografando seus livros. Destes, cinco estão no catálogo da editora gaúcha Dublinense, como O vício dos livros, Vamos comprar um poeta e Para onde vão os guarda-chuvas.
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Em meio a compromissos na agenda em sua visita a Porto Alegre, Afonso Cruz também conversou de forma exclusiva com a Gazeta do Sul, ao final da manhã de domingo, dia 3 de novembro, no saguão do Master Express Grande Hotel, na Rua Riachuelo. Na ocasião, lembrou de sua formação e temas de sua obra. Naquela semana, igualmente esteve em São Paulo e posteriormente em São Luís, no Maranhão.
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Entrevista
Magazine: Quais as primeiras principais referências literárias na tua vida, em termos de literatura portuguesa?
Afonso: Bem, é quase um estereótipo, mas em Portugal é difícil escapar à influência de Fernando Pessoa. Já na escola éramos estimulados a lê-lo, e eu diria que era uma leitura algo compulsiva. Assim, tivemos um contato talvez até um tanto prematuro com diversas obras. Também Camões, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, os clássicos. E creio que Fernando Pessoa tenha tido, independentemente do próprio conteúdo da obra, uma perspectiva para lá da literatura, ou seja, do conteúdo, e que tem a ver com a criação dos heterônimos, o que, de certa maneira, coincide com o espírito do tempo.
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Como isso se deu, naquele momento?
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Ali a Física já não encontra um centro no universo. O universo deixou de ter um centro e, portanto, há a perspectiva do observador. Quando se fala de observação, é sempre de determinado lugar, determinado ponto de vista, e o Fernando Pessoa acabou por fazer isso na literatura. Ele tornou-se vários, tornou-se múltiplo, como o universo. Isso coincidia também com movimentos artísticos que estavam a fazer isso mesmo, com a desconstrução da perspectiva, ou com vários perspectivismos. Como o Cubismo, em que a ideia era olhar para um objeto de vários ângulos. Creio que Pessoa percebeu muito bem o seu tempo, ou foi uma voz muito eloquente daquilo que estava a acontecer ao seu redor. Eu gostava muito também do Mário de Sá-Carneiro; estava na minha juventude, que tem aquele lado trágico e muito dramático, que também se revelou na sua própria vida, na sua biografia. Enfim, houve uma série de autores… E, depois, mais tarde, creio que o Dinis Machado terá sido um dos mais influentes para mim.
Esses autores continuam sendo lidos ainda na formação, por exemplo, no Ensino Médio?
Alguns sim, outros nunca estiveram lá, mas se tornaram propriamente cativos para mim. O caso do Dinis Machado, que falei, é um livro muito particular. É um livro, não; ele tem uma obra, ainda que este livro (O que diz Molero) tenha feito muito sucesso, estando com dezenas de edições em Portugal. Até me parece que, em termos formais, terá sido uma espécie de precursor do José Saramago. Porque ele também compunha os diálogos dentro dos parágrafos e, portanto, não fazia uma separação. Diferia do José Saramago, sobretudo na utilização do humor, que o Dinis Machado tinha. E tinha também um tipo de referência literária um pouco diferente. Portanto, ele ia buscar muito inspiração em policiais, na literatura de cordel etc. Portanto, coisas que não eram propriamente aquelas mais ortodoxas e de que os intelectuais gostam mais. Ele nunca esteve propriamente nos manuais escolares como algo obrigatório, e nunca pertenceu a esse ou a um cânone.
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Nasceste em uma cidade pequena, isso?
Numa cidade menor (Figueira da Foz), mas não rural. É uma cidade da área central de Portugal. De lá eu saí muito novo. Tinha 5 ou 6 anos quando fui para Lisboa. Meus pais decidiram mudar-se e, obviamente, com essa idade, fui com eles. Depois, vivi cerca de 30 anos em Lisboa. Vivi também um ano na Ilha da Madeira, em frente ao Marrocos. E agora vivo há 16 anos no Alentejo, no interior; vivo isolado numa fazenda. É uma cidade pequena. Nem é cidade, vivo mesmo isolado. É um povoado, chamado Casa Branca. Os meus pais moram em uma região parecida, a 250 km de lá.
“Um livro é mágico!”
A passagem do escritor português Afonso Cruz pelo Rio Grande do Sul, no início de novembro, para agendas na 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, foi uma oportunidade para ele estreitar laços com os seus leitores nesse Estado. E sua relação com os gaúchos vem de longa data, tendo percorrido inclusive regiões do interior. Nessa vinda, por exemplo, cumpriu roteiro em Caxias do Sul.
Mais do que ser lido por aqui, ou do que ver sua obra ganhar cada vez mais projeção, ele está sendo editado na capital gaúcha. Coube à editora Dublinense lançar vários de seus títulos referenciais, com cinco no catálogo até o momento. Afonso comemora e celebra essa receptividade e aposta em sua produção, voltada a diferentes gêneros, do romance à crônica, com direito a relatos de viagens (ele é um contumaz viajante pelo grande mundo) e até a uma enciclopédia totalmente “inventada”.
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Após cumprir seus compromissos em Porto Alegre, seguiu para São Paulo, onde também divulgou seu trabalho. E de lá viajou a São Luís, capital do Maranhão. A saída do Brasil se daria via Santo Domingo, na República Dominicana. Retornaria a Portugal para uma estada breve e logo embarcaria para a Coreia do Sul e, na sequência, para a Turquia. Afirmou que em todo o mundo árabe a sua literatura tem registrado excelente acolhida, a ponto de ter sido ele um dos principais destaques em feira do livro organizada em Bagdá, no Iraque.
Essa presença internacional faz dele um dos autores portugueses mais conhecidos e respeitados em diferentes culturas. Como mencionou na entrevista concedida à Gazeta do Sul, mesmo em meio a tantas viagens consegue produzir em trânsito, optando hoje pelo tablet ou até mesmo pelo celular, com o qual produz quase em tempo integral, encontre-se em que ambiente se encontrar.
Para a Gazeta, salientou muito especialmente sua carinhosa relação com a leitura. Como frisa em uma de suas obras, O vício dos livros, ele compreende o livro como um “vício do bem”, que enriquece a condição humana.
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Afonso Cruz, escritor português
Magazine: Em que momento de tua formação a literatura brasileira surgiu no horizonte? Os autores brasileiros já eram lidos no tempo de escola?
Afonso: Lia-se muito pouco. Creio que havia já uma assimetria muito grande entre os dois países, pelas suas dimensões também, e pelas dimensões do mercado. A capacidade que o Brasil tem de publicar é muito maior do que a capacidade portuguesa. Isso por um lado. Por outro, durante a ditadura vivemos períodos muito conservadores, muito nacionalistas, em que rejeitavam a influência externa. Aliás, um dos motes da ditadura é “orgulhosamente sós”. Portanto, houve aqui um alinhamento de outras literaturas. Inclusive, na altura, o grande escritor brasileiro era o Jorge Amado, portanto, provavelmente o mais nobelizável da época. E seus livros eram proibidos. Estavam todos censurados em Portugal. Mas o meu pai tinha muitos livros. O meu pai, o meu avô… E ele era um dos autores brasileiros que era mais ou menos lido e reconhecido. Mais tarde, quando começaram a aparecer as telenovelas em Portugal, algumas eram adaptações de romances do Jorge Amado.Também havia uma forte relação com a música. E, até de maneira curiosa, nossa nutrição cultural, digamos assim, nosso contato com a cultura passava muito pela cultura brasileira.
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A música, aliás, é uma de tuas áreas de atuação…
Em minha casa, ouvia-se mais música brasileira do que se ouvia música portuguesa, ou até pop/rock anglo-saxão, ou o que fosse. Também se ouvia alguma música francesa, italiana, até por motivos políticos. Mas o Brasil acabou por entrar também através das telenovelas. A música era e é fundamental. Foi uma área de atuação minha, inclusive anterior à literatura. Houve um período da minha vida, quando tinha 20 anos, que pensei em viver da música, mas acabei por desistir. Mais tarde, voltei a dedicar-me um pouco, nada de especial; não era um trabalho. Então construímos um projeto, uma banda baseada na música anterior à Segunda Guerra, especialmente música de origem americana, e lançamos quatro discos.
Em teu olhar de artista, tens preocupação com as questões sociais?
Quase todos os meus livros para crianças, ou infantojuvenis, têm uma preocupação social muito grande, não de modo racional, intelectual, mas de modo emocional. Se eu quiser trabalhar um tema complexo com uma criança, consigo, por exemplo, explicar a distribuição da riqueza simplesmente dando comida a uma criança e não dando nada a outra. É muito natural que uma criança, quando esteja com alguma comida, queira dividir com outra que não tem. Portanto, está ali uma noção muito simples do que significa justiça social. E todas as crianças compreendem perfeitamente quando nós damos um exemplo, ou seja, contamos uma história ou as colocamos a viver algo que possa ter essa presença emocional.
Uma de tuas obras recentes é O vício dos livros. É esse um vício do bem?
O vicio dos livros é a tentativa de um leitor apaixonado de tentar perceber o motivo da sua paixão e qual a importância dela, o que ela faz com a humanidade. A partir de uma altura, comecei a indagar por que nós compramos tantos livros, por que lemos tantos livros e por que o livro há de ser um objeto tão importante. Costumo dizer que o livro é o primeiro disco de memória externa que nós temos. Foi a primeira vez que conseguimos gravar pensamentos sem ser num cérebro; consigo transmitir a informação para outra pessoa, e ela pode memorizá-la e depois reproduzi-la. De modo externo ao cérebro, é a primeira vez que se faz. Não é com o livro, é com a escrita; e a escrita é tirar a nossa alma do cérebro e colocá-la em outro lugar. E a coisa mágica disso é que, impresso num livro, gravado na rocha, consigo transmitir informação. Se eu imaginar que consigo extrair o mais importante da minha mente, daquilo que me constrói, e passar para um suporte durável, ou que possa subsistir em outros suportes, sem perder seu conteúdo, de certo modo é o primeiro download da alma a que nós temos acesso.
E, enfim, permite dialogar com pessoas que viveram há 2 mil anos, ou dialogar com pessoas do futuro, que nem sei quem serão; não sei quem é o leitor futuro, mas, quando estou a escrever, sei que muito provavelmente ele virá a dialogar comigo. Não estarei me antecipando, mas, a partir do momento em que ele me ler, alguma coisa irá mudar nele, e ele irá trabalhar a partir disso, alguma informação será adquirida em meus livros.
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