Não raras vezes, a sala lá de casa se transforma em palco para números musicais ou peças de teatro protagonizadas pelas gurias. Trata-se de tradição já mais antiga, que começou bem antes da quarentena. As atrizes não cobram ingresso, mas exigem atenção total da plateia, impreterivelmente formada por mim, pela Patrícia e pelo Júnior – que exercita sua tênue paciência adolescente nessas ocasiões. Celulares são estritamente proibidos e cochichos entre os espectadores podem acabar em duras reprimendas: as próprias artistas interrompem o espetáculo e censuram o deseducado, deixando-o em situação vexatória. E, nesses casos, é comum reiniciarem a peça desde o início, forçando o público a um déjà vu.
Pessoas externas ao círculo familiar são desprovidas do privilégio de assistir aos espetáculos, sob risco de inibirem a desenvoltura do elenco. Críticos e penetras não são bem-vindos. Além disso, no atual momento de isolamento social, tornou-se desaconselhável atrair público maior. Portanto, se não és de casa, não adianta insistires: jamais verás o que se passa sob as luzes da ribalta.
Uma das peças mais marcantes dos últimos tempos foi a da Tigresa e do Unicórnio, por uma série de motivos. A começar pelo horário da estreia – já passava da meia-noite quando foi encenada. Felizmente foi em um período chuvoso de férias, de modo que o adiantado da hora não traria prejuízos ao rendimento escolar no dia seguinte – ainda nem se cogitava, na época, que uma pandemia estava por vir.
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A demora até o início do espetáculo deveu-se aos longos ensaios, que começaram muitas horas antes. Complexa, a história tinha muitas falas para decorar e a Isadora – que, além de integrar o cast de atrizes, é diretora – é muito exigente em relação à performance das irmãs menores. Embora o ensaio tenha ocorrido a portas fechadas, foi possível notar que, por várias vezes, foi interrompido por ferrenhas discussões. A Patrícia teve que intervir em algumas ocasiões, inclusive quando houve choro.
Outro aspecto marcante foi o figurino. Em um rompante de ousadia, desta vez elas apostaram pesado em tinta têmpera para dar vida aos personagens. A Yasmin converteu-se na tigresa, com boa parte do rosto coberto por tinta cor de laranja e amarela, pintas, focinho, bigodes e dentes brancos, que se projetavam ameaçadoramente para fora da boca, desenhados do lábio inferior até o queixo. Ágatha virou um fofo unicórnio, com as faces rosadas e contornos amarelos na testa simulando o chifre – impossível de ser produzido em terceira dimensão por falta de mais recursos. Como nas fábulas os animais se vestem tal e qual seres humanos, ambas apostaram em longos vestidos, o que conferiu um aspecto bucólico para a encenação. Isadora, por sua vez, incorporou-se à figura de um papagaio tagarela, com tiras recortadas de jornal coladas na roupa, como longas penas. Coube ao papagaio a função de narrador, abusando de uma voz esganiçada e, eventualmente, tendo que fugir às investidas da tigresa faminta.
Em resumo, a história tratou da improvável amizade entre o ingênuo unicórnio e a tigresa ardilosa que, a princípio, queria devorá-lo. Não vou revelar muitos detalhes, sob risco de spoiler. Vai que alguma grande companhia de teatro se interesse pela história, ou que a Netflix queira filmá-la. Antecipo, porém, que durante a apresentação foi possível entender a necessidade de tanto ensaio. Havia até falas em verso.
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TIGRESA
Eu sou a tigresa e sou sensacional
uso esse vestido porque sou mortal
todo meu ataque é letal
e adoro devorar unicórnios…
Sim, a parte final da estrofe destoou um pouco pela falta de rima. Mas deu o tom dramático da apresentação, evidenciando o risco iminente que o pobre unicórnio corria. Ainda assim, este acreditou, o tempo todo, que poderia amolecer o duro coração da perigosa tigresa.
UNICÓRNIO
Eu sou uma criatura indefesa,
quase como uma coelha,
mas não vou deixar minha amiga andar
nesse caminho estreito.
Vou ajudá-la a escalar
até o alto da montanha
juntas, vamos chegar.
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Que lição de altruísmo, de fé no outro, de acreditar que é possível mudar a pessoas. Simplesmente catártico!
E o final da história, lá pela 1 hora da madrugada foi, enfim, feliz.
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