Na história da imigração alemã em Santa Cruz do Sul, a educação tornou-se um dos pilares para o desenvolvimento. Os primeiros colonos que vieram para Alte Pikade, a partir de 19 de dezembro de 1849, sabiam da necessidade de estabelecer o ensino.
Assim como em outras colônias alemãs, os habitantes não contavam com recursos do governo imperial brasileiro para a construção da estrutura necessária. E, apesar dos inúmeros desafios enfrentados ao longo dos primeiros anos no novo lar, não mediram esforços para prover conhecimento aos filhos.
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Casas, pavilhões e até locais destinados aos cultos viraram salas de aula. Quando as acomodações não comportavam mais todos os alunos, começaram a surgir as primeiras escolas comunitárias, providas pelos colonos. O empenho foi essencial para o avanço da educação, à medida que o município
se desenvolvia.
Desse modo, as instituições não se limitaram aos ensinos Fundamental e Médio. Em pouco mais de um século, surgiram os primeiros cursos superiores.
O acesso à educação ganhou um novo escopo na sociedade germânica no século 16. Durante a Reforma Protestante, Martinho Lutero defendeu que ela não deveria se limitar aos nobres e ao clero. Considerava o conhecimento fundamental para os cristãos serem livres. E para ter acesso à Sagrada Escritura e aos hinos, era preciso aprender a ler.
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A atitude provocou um despertar educacional na região do Sacro Império Germânico. Passados três séculos, esse conceito sobre a importância do ensino foi trazido pelos imigrantes europeus ao Brasil. Além do desejo de começar vida nova, havia entre eles a visão de que a educação era essencial aos seus filhos e, consequentemente, para o desenvolvimento econômico, social e cultural.
Conforme o diretor do Colégio Mauá, Nestor Raschen, o governo brasileiro prometia, na época, a criação de escolas para que o projeto de imigração fosse bem-sucedido. Essa propaganda estava alinhada aos anseios do povo alemão. “Para os imigrantes, estava muito claro que era importante ter escola aqui no Brasil”, afirma.
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Entretanto, a promessa ficou apenas no papel. Isso não impediu, contudo, que as instituições fossem erguidas. “Ao invés de ficarem lamentando a não existência de escolas, se uniram para criá-las por conta própria”, enfatiza.
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Segundo o docente, havia uma necessidade de que os filhos aprendessem a ler, escrever e fazer contas. Esses aspectos eram impreteríveis para que os colonos pudessem ser bem-sucedidos no comércio. “Entendiam que era importante porque, se viessem a fazer qualquer negócio, não seriam enganados.”
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A professora de História e diretora do Museu do Colégio Mauá, Maria Luiza Schuster, explica que, para garantir o ensino das crianças, cada comunidade se mobilizou para criar um lugar a fim de acomodar uma sala de aula. Até mesmo os cômodos das residências eram utilizados.
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A estrutura delas era simples, com bancos de madeira para os alunos, que eram divididos entre os colegas. Na falta de material didático, era necessário criatividade. Diferentemente de hoje, o quadro era negro e não verde e nem branco. Enquanto não havia cadernos de papel, os alunos usavam a lousa, produzida em ardósia. Após anotarem as lições, tudo era apagado. “Desenvolvia muito a memória, porque eles precisavam lembrar o que haviam aprendido”, enfatiza Raschen.
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Na falta de professor, a pessoa com mais conhecimento e estudo na comunidade assumia o cargo. “Quando não havia professor, escolhiam entre eles aqueles que tinham mais conhecimento, com mais aptidão para o ensino”, esclarece o diretor.
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Pastores e padres também desempenharam essa função até que mais tarde conseguiram contratar professores com formação. Muitos vinham de comunidades europeias de língua alemã para assumir as escolas.
A responsável pelo museu acrescenta que inicialmente o ensino foi em língua alemã, pois era o que conheciam. Havia um zelo por alfabetização, caligrafia, leitura silenciosa e oral. Os estudantes também aprendiam noções básicas de matemática (resoluções de problemas, tabuada etc.), ciências naturais, geografia, história.
Logo mais, também começou o ensino da língua portuguesa. “Era para facilitar a comunicação com os lusos, no caso de Santa Cruz comercializar em Rio Pardo, com os quais faziam seus negócios”, explana Maria Luiza.
Diante do pleno desenvolvimento da Colônia de Santa Cruz, mais escolas comunitárias despontaram. Quase duas décadas após a chegada dos primeiros imigrantes na região, em 1868, o pastor Herman Bergfried passou a atender os filhos dos imigrantes na sala da casa pastoral. Contudo, um problema surgiu dois anos depois: a quantidade de estudantes aumentou acima do esperado. “A sala da casa dele não comportava o número de alunos para o ano letivo”, afirma o diretor do Mauá, Nestor Raschen.
Restou ao líder religioso levar a questão para os pais, no intuito de encontrarem uma saída. Assim, no dia 27 de julho de 1870, tomaram três decisões. A primeira foi criar uma sociedade escolar, denominada Schulgemeinde, responsável pela manutenção da escola.
O encontro também marcou a criação da escola alemã, a Deutsche Schule, disponível para toda a comunidade, independentemente de etnia ou credo. Duas salas de aula foram alugadas para atender à demanda e garantir o acesso à educação.
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Em 1873, a sociedade trouxe da Alemanha o professor Roberto Jaeger. Conforme Raschen, além de educador, o alemão era músico e tocava órgão de tubo, talento agregado para outras finalidades. Para o diretor do Mauá, a decisão de contratar um professor da Europa foi uma atitude ousada. “Se hoje é difícil, imagina na época”, afirma.
No ano seguinte, em 31 de outubro, a instituição inaugurou o primeiro prédio próprio, localizado nas esquinas das ruas São Pedro e Colônia, atuais Marechal Floriano e Borges de Medeiros. Além da sala de aula, a estrutura contava com uma torre, que servia como um templo religioso para a comunidade evangélica do Mauá.
Outro destaque, segundo Raschen, foi incluir turmas mistas, com meninos e meninas, algo incomum para a época. “É um ato de vanguarda, permitindo que as meninas luteranas pudessem estudar no Mauá.” Mais tarde, em 1890, o colégio também disponibilizou um internato, que esteve em atividade por quase um século.
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Ao longo da sua história, a instituição adotou diversos nomes até que, em 1942, chamou-se Instituto Visconde de Mauá. Em 1949 adotou a denominação atual, Colégio Mauá. O museu da escola foi fundado na década de 1960, iniciativa de seu primeiro diretor, Hardy Elmiro Martin. O espaço histórico-cultural visa preservar e valorizar não só a história dos imigrantes, mas também o legado na educação. Seu acervo conta com uma série de objetos doados pela comunidade regional, que ajudam a demonstrar como eram as atividades escolares nas primeiras décadas da colônia.
Passados 154 anos de sua fundação, o Mauá mantém em sua essência os ensinamentos deixados pelos imigrantes. Para Raschen, que ingressou no colégio em 1980, a convite do então diretor Martin, a principal herança é o espírito comunitário desenvolvido no município desde os primórdios. “Eles entenderam que a boa escola é aquela que tem sua comunidade envolvida e engajada no processo de aprendizagem e na manutenção dela.”
Devido à importância dada à educação pelos imigrantes alemães, havia um grande prestígio na figura do professor. “Era uma figura de respeito enorme na sociedade. Na ausência do padre ou do pastor, essa mesma pessoa era consultada em caso de conflitos”, explica Raschen.
Ele cita como exemplo o alemão Roberto Jaeger. Considerado uma grande liderança na colônia, acabou sendo um dos primeiros conselheiros de Santa Cruz, o que na época correspondia ao papel de vereador.
Para além do ensino na sala de aula, destacavam-se pela vocação cultural. Era comum que tocassem instrumentos e participassem dos cultos aos domingos. “Os professores fizeram uma grande diferença e colaboraram para que hoje Santa Cruz se destaque na cultura. Isso é fruto dessa aptidão dos educadores em ensinar artes, músicas, orações e hinos”, afirma o diretor do Mauá.
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A responsável pelo museu do colégio, Maria Luiza Schuster, explica que cabia aos professores o papel de divulgar seu trabalho. “A dedicação do professor fazia sua fama e qualidade correrem pela comunidade.”
Segundo ela, os pais confiavam muito no trabalho do mestre. “O professor era figura muito respeitada e colecionava muitas vezes inúmeros afilhados na comunidade onde trabalhava. A sala de aula era uma, mas, no mesmo espaço, várias séries eram atendidas pelo professor no mesmo turno”, detalha.
A retribuição, ou seja, o pagamento, dava-se de diferentes maneiras. Com a mobilização dos pais, os educadores recebiam desde moradia a produtos agrícolas, uma área de terra (o uso era para o período em que estivesse atuando na comunidade) e algum dinheiro em espécie. O diretor Raschen acrescenta que também poderiam ganhar alimentos, como pão, carne e outros produtos, para garantir o sustento. “Normalmente, ao lado da escola, havia uma área de terreno que poderia ser a horta, para que o professor tirasse o seu sustento.”
Para o responsável pela gestão do Mauá, embora a figura do educador continue sendo notável, é necessário que a comunidade reconheça o importante papel que exercem, contribuindo não só no aprendizado dos filhos, mas no desenvolvimento do município.
O sonho dos imigrantes alemães em prover uma educação de qualidade em Santa Cruz do Sul possibilitou a expansão em diversas áreas. Em 1871, os católicos, por meio do padre Augusto Lohmann, contribuíram com a fundação da Escola Paroquial. Posteriormente, coube aos padres jesuítas a missão de administrar a instituição. Diante da grande quantidade de alunos e da dificuldade para acomodá-los, iniciou-se a construção de uma nova edificação, concluída cinco anos depois.
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Na virada do novo século, em 1902, começou o processo de transferência para os Irmãos Maristas, diante da necessidade de melhorar a especialização e a abertura de cursos mais adiantados. Passadas cinco décadas, o colégio deu início à instalação da primeira faculdade de Santa Cruz do Sul, a Faculdade de Ciências Contábeis. Quatro anos depois, surgiu a Faculdade de Direito.
A iniciativa deu-se graças ao grupo de santa-cruzenses responsáveis por fundar a Associação Pró-Ensino em Santa Cruz do Sul (Apesc). A entidade, presidida por Juergen Klemm na época, trabalhou por dois anos até obter a aprovação do Conselho Federal de Educação para dar início a primeira faculdade. Mais opções passaram a ser incorporadas, até que, em 1980, formaram-se as Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul (Fisc), que abrigaram a Escola Educar-se para alunos de pré-escola e níveis Fundamental e Médio.
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Em 1991 deu-se início ao processo que, em dois anos, elevou a Fisc ao status de universidade. Assim, passou a se chamar Universidade de Santa Cruz do Sul. A instituição se expandiu nos anos seguintes, com a construção da biblioteca central e mais salas de aula.
Além do estabelecimento de novos cursos, implantou-se em 1994 o primeiro curso de pós-graduação Stricto Sensu, o mestrado em Desenvolvimento Regional, que desde 2005 também oferece doutorado. Hoje, a Unisc oferece mestrado e doutorado para diversos cursos. Passadas três décadas, preserva o caráter de universidade comunitária, contribuindo em diferentes frentes no Vale do Rio Pardo.
Para o diretor do Colégio Mauá, Nestor Raschen, esses são apenas alguns exemplos de como o empenho dos imigrantes fez com que o município fosse destaque no ensino, impulsionando o desenvolvimento social e econômico. Ele defende que toda a comunidade santa-cruzense tem o dever de valorizar o legado dos pioneiros e de manter um ensino de qualidade. “Pessoas bem instruídas são pessoas que sabem exercer a sua cidadania, valorizar os seus direitos e cumprir seus deveres”, complementa.
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