Mestre referencial de várias gerações de estudantes de graduação e de pós-graduação especialmente das áreas de Letras, os quais passaram pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o professor Luis Augusto Fischer é igualmente um pensador e escritor de primeira linha. Nas salas de aula, contribui para a formação de novos profissionais de ensino e de pesquisa; em romances e ensaios, com erudição, mas sem abrir mão da clareza de exposição de suas ideias, amplia o conhecimento de leitores de todas as idades.
Assim é Fischer, um estudioso que se empenha na difusão de conteúdo que leve à reflexão dos leitores, em jornais, revistas e, claro, bons livros. A estes, em meio a quase duas dezenas de títulos que já assina, em 2022 agregou um oportuno estudo, A ideologia modernista, sobre a Semana da Arte Moderna de 1922, cujo centenário transcorreu em março. No ano passado, outra contribuição relevante fora a obra Duas formações, uma história, em que faz a sua leitura da trajetória da literatura brasileira.
Nascido em Novo Hamburgo, Fischer praticamente passou toda a sua vida, desde os primeiros dias, em Porto Alegre. Aos 64 anos, formado em Letras, é um intelectual que se esmera em contribuir para a expansão do conhecimento em geral. O Dicionário de Porto-Alegrês, que compilou, e cuja primeira edição é de 2000, é um dos maiores best-sellers do mercado editorial gaúcho. Nesta entrevista, reflete sobre a condição de professor e as atividades nas quais, a partir da sala de aula, costuma se envolver.
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Gazeta do Sul – A trajetória do senhor, na formação e na atuação como professor, está vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), onde o senhor leciona já desde 1985, nas áreas de Letras. Como avalia a contribuição da Ufrgs ao longo desse período, no conjunto dos estudos e do ensino de Letras e de Literatura no Brasil?
Luis Augusto Fischer – Acho que temos um bom Instituto de Letras, dentro de uma boa universidade, considerados os parâmetros disponíveis. Em avaliações da área, na graduação e na pós, estamos sempre entre os primeiros, ou com as notas no primeiro patamar. Nosso curso de pós-graduação tem nota 7, a máxima, na avaliação da Capes, já há alguns anos. E a Ufrgs em conjunto está entre as cinco melhores do País, entre as três federais mais importantes – em algumas avaliações somos o primeiro lugar no Brasil, inclusive.
Especificamente no campo da Literatura, temos um bom histórico e creio que uma contribuição compatível com nosso tamanho. Isso se pode verificar, por exemplo, pelos professores e pesquisadores que formamos, na graduação e na pós, que andam pelos sistemas de ensino, no Estado e fora dele, em todos os níveis de ensino para os quais preparamos. Da mesma forma, creio que no conjunto da história (a graduação em Letras vai completar 80 anos em 2023, e nosso programa de Pós tem 50 anos de vida) temos produzido também pesquisas, ensaios, livros, artigos, de boa valia, no âmbito brasileiro.
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Mas sempre fico, pessoalmente, com a sensação de que devemos buscar mais interação com a sociedade. Uma frustração pessoal que tenho é não termos organizado na Ufrgs, em nossa área e em outras, uma forma de preservar acervos de pesquisadores, professores etc., que, ao morrerem, veem seu trabalho de décadas simplesmente desfeito, porque os herdeiros em regra não se interessam em manter, ou não conseguem fazê-lo. Já perdemos uma quantidade obscena de acervos assim. Por sorte o Estado conta com o Delfos, da PUCRS, que está bem estruturado e tem sabido preservar muita coisa.
Ao longo de quase quatro décadas em que o senhor leciona, gerações de estudantes passaram por suas salas de aula. E muitos são hoje autores ou pesquisadores referenciais no País. O que diferencia o Estado ou o que constitui um fermento intelectual gaúcho nesse cenário?
São vários fatores. Um deles é o prestígio que a figura do professor tem entre nós, fruto de uma tradição muito boa de ensino público e privado. Nisso, aliás, os descendentes dos germânicos iniciais têm um papel importante, pela valorização que sempre deram à escola, à leitura etc., ao lado de uma singular força do ensino público no Estado, desde o começo da República, passando pelos governos trabalhistas, que sempre prestigiaram a escola. Se hoje a escola pública anda mal, é problema nosso, do presente, que não soube levar avante essa tradição.
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Outro elemento tem a ver, creio, com a posição fronteiriça do Estado. Essa condição, ao longo do tempo, é um fator de relevo para a criação de uma consciência de diferença – quem vive em fronteira, em qualquer parte do mundo, é sempre mais propenso a se interrogar sobre sua identidade do que quem vive nos centros geopolíticos. E o Rio Grande foi e é uma fronteira viva, há uns três séculos, ao menos.
Desse caldo de cultura nasce, penso, a força da literatura e da reflexão no Estado. Não significa que por esses fatores somos melhores (nem piores) do que outros brasileiros, mas significa que nos colocamos questões fortes e as respondemos escrevendo e lendo. Daí nasce, creio, a força da literatura e da leitura no Estado.
O senhor também teoriza acerca do papel da universidade e da cultura para o desenvolvimento social. Por que a literatura e as áreas de Letras são tão importantes para a sociedade em relação a outros setores, por vezes ditos mais demandantes de profissionais formados?
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Hoje em dia se usa uma expressão em inglês que traduz bem o caso: as letras, as humanidades, a arte e o pensamento enfim são parte essencial do “soft power”, o poder sutil, digamos. Certos países têm força econômica e militar e por aí se impõem, e de outra parte certos países dispõem de força cultural – aqui entram as universidades, que só existem na medida em que contêm áreas de ciências sociais, letras e artes, e aqui entra a indústria cultural. Como muitos outros, eu experimentei ao vivo a força cultural do Brasil na Europa: em várias cidades, de muitos países, o Brasil interessa para as pessoas em geral como a terra da grande música popular, com o samba, a bossa nova e outros – isso em paralelo com o interesse em comprar nossas commodities. É assim: onde há um soft power aliado ao hard power (indústria, agro etc.), pode ter certeza de que temos uma potência. Basta olhar os exemplos dos Estados Unidos, ou, antes, da Inglaterra e da França, e mais recentemente ainda da China, que espalhou pelo mundo afora estudantes e professores, criando sedes do Instituto Confúcio, como forma de garantir a construção desse poder sutil.
O senhor entende que as áreas de Letras e Literatura vivenciam uma espécie de resistência, aguardando ver reafirmada a sua importância e prioridade, no caso do Brasil?
Contra a barbárie bolsonarista, certo que sim. Quem manteve atenção crítica para as coisas nos anos mais recentes sabe que um dos alvos foi a inteligência livre, a arte, o pensamento crítico, coisas que só podem de fato frutificar em ambiente de liberdade. Mas também é possível ver essa resistência, em sentido mais difuso e não menos forte, na relação entre as artes e o pensamento crítico relativamente ao acachapante poder das telas e telinhas, que reduzem tudo a um videozinho de 30 segundos e fazem o horizonte ficar muito estreito. A arte e o pensamento querem sempre as grandes perspectivas, a visão ampla.
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Os últimos anos, no que tange a ensino superior e perspectiva para o futuro, trouxeram alento ou desalento?
Do ponto de vista do financiamento, foram anos ruins, logo desalentadores, mas creio que o Brasil como um todo carrega uma vitalidade notável, que tem energias para sobreviver a muitos percalços e reinventar as coisas, o que é alentador.
O senhor alia, em paralelo ao trabalho como professor, produção em pesquisa, ensaio e até mesmo ficção. O senhor é um escritor que se tornou professor ou um professor que se tornou escritor, por assim dizer?
Sou um professor que também escreve. Minha definição essencial é ser professor. Escrever, publicar, ser lido, tudo isso tem a ver com o fato de ser professor da Ufrgs, dispor de um salário muito superior à média recebida pelos colegas de outras inserções (estaduais, municipais, privadas) e ser incentivado a produzir. Se eu não pesquisasse e escrevesse, certamente seria por negligência ou incompetência minha.
O senhor contribuiu no volume “Nós, os teuto-gaúchos”. Sendo natural de Novo Hamburgo, como o senhor vê e avalia a contribuição dos imigrantes e descendentes de alemães para a cena cultural do Estado, agora que o Brasil está próximo de comemorar (em 2024) 200 anos desde o início da colonização?
Não só contribuí como fui coorganizador, com o professor René Gertz, uma referência superior no tema da imigração alemã. Ao trabalhar naquele volume, ficou muito claro, mais do que antes, o imenso valor que tiveram a imigração e o trabalho dos descendentes. Não se trata de idealizar ou de pensar que tudo que sai desse mundo é perfeito ou algo assim, porque há belezas e horrores em toda parte, inclusive no mundo germânico. Mas, sim, se trata de reconhecer uma série de obras, materiais ou não, nascidas e desenvolvidas a partir dessa experiência. Falei acima da tradição de prestígio ao ensino, à escola, ao professor, à leitura; podemos falar da tradição associativista, que no Estado dependeu essencialmente da experiência social germânica. Da mesma forma podemos falar do valor do empreendedorismo e do trabalho, que, no que aprendi em família, emparelham com o valor da solidariedade e da justiça social. Esse mix é, para mim, a herança germânica a ser preservada, contra um viés autoritário e elitista que também tem condições de florescer no meio e que deve ser combatido criticamente sempre.
Como o senhor avalia, já olhando retroativamente, o impacto e o legado da pandemia para a educação, mais especificamente para o ensino superior, no qual o senhor atua?
Tenho exemplos vivos disso em casa, porque tenho filhos adolescentes que viveram os dissabores do isolamento. Também no ensino universitário experimentei a parte ruim da pandemia, esse isolamento e, mais ainda, o bloqueio da experiência talvez a mais significativa da escola e do ensino em geral, que tem a ver com a convivência com colegas e professores, com um espaço muito especial que é o ambiente de ensino; enfim, toda uma experiência de amadurecimento pessoal sutil que a escola e a universidade proporcionam. Essa perda é irrecuperável: aquilo que não ocorreu fará falta para cada um, conforme sua idade e outras dimensões. O que é possível fazer é voltar a esse convívio, reaprender a ser mais tolerante com as diferenças e a estar disponível para a grande aventura da amizade, do companheirismo e do aprendizado pessoal.
Ficou algo de positivo em termos de aprendizagem para o futuro, ou foi um período mais marcado por angústia, inquietação, e que era melhor superar e seguir adiante?
Do lado bom, ficou a grande facilidade que é a de a gente se reunir, para certas tarefas, via aplicativos, uma grande virtude. Muitas reuniões de trabalho, que demandavam horas de deslocamento, agora podem ser feitas online, com enorme economia. E ficou também a possibilidade de contatos para muito além da sala de aula – eu tive alunos de várias partes do Brasil e de muitos outros países, no campo da pós-graduação.
E, na cena da literatura, por que (ou o que faz com que) o Rio Grande do Sul tenha tantos nomes referenciais, e inclusive uma quase constante renovação, na cena literária brasileira? Onde reside o segredo?
Como disse acima, há fatores locais que proporcionam um relevo social significativo para as artes e o pensamento – o Rio Grande do Sul produz e lê bastante, e isso representa um valor extraordinário para a literatura. Acresce ainda que temos no Estado um circuito muito forte de feiras e outras atividades coletivas ligadas com o livro e a literatura, o que capilariza o sistema literário: creio que não temos bibliotecas em número e qualidade suficiente, mas temos a compensação desses eventos, que tornam possível o contato de pessoas comuns com esse universo.
E como o senhor analisa a forma como o Estado dialoga com as outras regiões, inclusive na cultura? Os gaúchos se ocupam muito deles próprios, ou estão sabendo interagir bem? Como avaliar essa questão?
Sim, somos muito autocentrados e um tanto narcisistas, o que se pode perceber no tanto de livros e eventos em torno disso. Temos um certo complexo de inferioridade, que nos torna sensíveis a ideias de que não somos tão prestigiados quanto deveríamos ser etc. (bobagem), e esse complexo alterna com um tolo sentido de superioridade, de crer que o Rio Grande tem algo de especial etc., viés esse muito encontrável no mundo dos CTGs. Mas mesmo no mundo do tradicionalismo se encontram iniciativas de encontros, como os festivais de folclore, que de algum modo cultivam a diversidade, ainda que estereotipada muitas vezes. Nas cidades maiores, certamente há uma abertura maior para a aceitação da diversidade, em todos os sentidos, o que é sinal de um bem-vindo cosmopolitismo.
Por fim, por que a sociedade deve prestigiar, persistir sempre nisso e apoiar os estudos e a qualificação nas áreas de Letras, Literatura e outras a elas vinculadas? É preciso sempre uma defesa dessa área?
Pelos motivos que apresentei acima, quando falamos do soft power da cultura. A cultura, em sentido amplo – envolvendo a literatura e as artes, assim como a filosofia e as ciências sociais –, é um daqueles casos de um poder fraco, cuja forma a gente percebe muitas vezes tardiamente, ou aos pedaços: por exemplo, quando até mesmo gente ligada apenas ao mundo da produção industrial ou do agro se dá conta de que gosta de ouvir música, que faz bem assistir a um concerto, que melhora até a saúde mental ler um livro etc. Não precisa ser uma pessoa especialmente sensível ou particularmente culta para sentir, mesmo que apenas intuitivamente, o valor da beleza e do pensamento crítico, que são a alma da vida cultural.
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