Quem leu apenas um livro na vida, este foi o melhor. Quem leu dois, já pode fazer uma escolha. Quem leu muitos, pode até ficar confuso ante a pergunta: qual o melhor livro que leste? Não me dou o direito de estabelecer uma escala, até porque a leitura de um livro muitas vezes tem estreita vinculação com o momento que se vive. Alguns, por exemplo, apreciam uma obra, mas quando descobrem certos vínculos ideológicos, políticos ou religiosos do autor, torcem o nariz. Assim, inúmeros excelentes escritores são execrados pelas patrulhas de plantão. Uma boa obra literária transcende esses cerceamentos e busca morada em corações acolhedores, pacientes, desarmados.
Eu li muitos livros e me considero incapaz de estabelecer uma escala dos melhores. Vários me marcaram, ensinaram, permaneceram para sempre em minha vida. Cito alguns: Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez; Ana Karênina, de Liev Tolstoi; Crime e castigo, de Fiodór Dostoiévski; São Bernardo, de Graciliano Ramos; O tempo e o vento, de Erico Verissimo; e muito mais. Hoje quero me deter numa surpreendente obra do autor italiano Dino Buzzati (1906-1972), O deserto dos tártaros (1940).
O protagonista é o jovem tenente Giovanni Drogo. Concluída a academia militar, aos 22 anos é nomeado para servir num forte, o forte Bastiani, na longínqua e isolada fronteira norte da Itália. Em uma edificação antiga, no meio de montanhas inóspitas, clima insuportável, uma guarnição de muitos homens vigiava o deserto de onde poderia ocorrer uma invasão proveniente do norte, a dos tártaros. Anos a fio, vigiavam aquele deserto vazio sem praticamente nunca notar qualquer sinal de ataque. A paisagem era monótona, insuportável. Vigiavam o nada.
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Drogo vai para lá na certeza de que em quatro meses estaria de volta à sua cidade. Logo percebeu que “todos lá dentro pareciam ter-se esquecido que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres e hospitaleiras”. O jovem foi advertido por militares mais velhos: alguns vieram para cá para ficar quatro meses e nunca mais conseguiram sair. “Os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas”, diz o narrador. Drogo acabou ficando, minado pelo “torpor dos hábitos, pela vaidade militar, pelo amor doméstico aos muros cotidianos”.
Depois de dois anos, fez uma visita à sua cidade, à sua casa. A mãe o recebeu com indiferença, os irmãos tinham partido, a antiga namorada não lhe deu atenção, os amigos não mais o acolheram. Diante desse quadro, resolveu retornar ao forte, onde literalmente foi gastar sua vida. Lá permaneceu até os 54 anos, quando, enfermo, inválido, triste, foi dispensado pelo comandante, justamente no momento em que, depois de anos de espera, alguma coisa se movia no deserto, prenunciando uma possível batalha contra o fantasioso inimigo. Drogo sentiu profunda frustração, porque a grande expectativa da vida era lutar contra esse inimigo e ele estava frágil, às portas da morte. Estava fora de combate.
O livro me marcou porque mostra o que pode acontecer com quem não tem coragem de mudar, de questionar o sentido da existência. Aqueles homens passam a vida inteira investindo num projeto, rotineiro, sem nuances, sem riscos, e que foi dizimado pela passagem inútil mas inexorável do tempo. No forte Bastiani, as pessoas, incapazes de reagir, vão introjetando uma rotina que acaba por corroer silenciosamente suas vidas.
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(A todos os leitores, um feliz e abençoado Natal!)
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