A escritora Lygia Fagundes Telles se diverte quando conta um dos vários fatos engraçados vividos ao lado de Clarice Lispector. “Ela não gostava de me ver sorrindo para fotos e dizia: ‘Liginha, não sorria, escritoras que sorriem não são levadas a sério”. Já o também autor Otto Lara Resende festejava quando recebia, pelo correio, alguma notícia de Clarice. “Ler as cartas de Clarice é como saborear garrafas de champanhe espumante”, dizia ele. É justamente o relacionamento próximo com seus colegas de escrita o ponto alto do livro Todas as Cartas (Rocco), que será lançado nesta sexta, 25, e que reúne 284 missivas enviadas por Clarice a familiares e amigos (entre autores e editores).
E, desse total, cerca de meia centena é inédita para o público, justamente a que ela utilizou para trocar opiniões e confidências com destinatários como João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Lêdo Ivo, Paulo Mendes Campos, Nélida Piñon, Natércia Freire e Mário de Andrade, além de Lygia e Otto. O livro foi organizado por décadas, dos anos 1940 aos 1970, e o texto recebeu notas da biógrafa Teresa Montero, que contextualizam os fatos.
“Temos a oportunidade de acompanhar quatro décadas do itinerário da escritora cuja rara sensibilidade fala aos seus destinatários sobre diversos ângulos da vida”, escreve Teresa, no prefácio. “As angústias que acompanharam a penosa formação de uma jovem que abraça o destino de ser uma escritora. A de ser mulher em um tempo no qual os caminhos do universo feminino eram extremamente áridos: a Academia Brasileira de Letras, por exemplo, ainda não ousava mudar seus estatutos para permitir o ingresso das mulheres. Clarice mostra-se sempre sensível e aberta para respeitar aquilo que nos é mais caro: a nossa essência.”
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A vasta correspondência de Clarice já inspirou a publicação de outras três obras: Cartas Perto do Coração (2001), organizada por Fernando Sabino, Correspondências (2002) e Minhas Queridas (2007), estabelecidas por Teresa Montero. Nesse contexto, Todas as Cartas, além de recuperar esse material, traz informações valiosas. “É um aporte de duplo valor, pois ilumina alguns aspectos pouco conhecidos de sua personalidade e, por outro lado, oferece novos subsídios para os estudiosos e pesquisadores de sua obra literária”, observa Pedro Karp Vasquez, editor da obra de Clarice na editora Rocco.
A primeira carta tem a data de 17 de maio de 1940 e é endereçada a uma de suas irmãs, Elisa – ela e Tania são as principais destinatárias no primeiro lote de missivas, que soma 150 cartas, das quais 16 inéditas em livro. Ali, Clarice, cujo centenário de nascimento será celebrado no dia 10 de dezembro, já ensaiava sua entrada no mundo da escrita, trabalhando como repórter e tradutora na Agência Nacional – também sentia as agruras do salário baixo. “Entre as qualidades do dinheiro, não está a elasticidade”, escreve, revelando um humor que vai pontuar muitas de suas cartas.
“Amparando-me no testemunho de duas de suas maiores amigas, Marina Colasanti e Nélida Piñon, posso garantir que Clarice tinha, de fato, muito senso de humor”, atesta Vasquez. “Aquele tipo refinado e imperceptível para alguns que é característico das grandes inteligências pessimistas. Apesar de suas origens, não seria o típico humor judaico e, sim, mais aparentado ao sutil humor britânico.”
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De fato, ao final da mesma carta, Clarice acrescenta um P.S.: “Não fique nervosa se não puder entender a letra. Conte até 10, dê uma volta pelo jardim e volte à tarefa com o espírito de sacrifício cristão”.
O último documento registrado no livro não tem data precisa, apenas novembro de 1977. Trata-se de um bilhete enviado por Clarice a Lygia Fagundes Telles em que revela uma impressionante visão de futuro. Além de elogiar o trabalho da amiga (“Você é tão doce e escreve tão bem”), Clarice expõe sua felicidade pela então recente eleição de Rachel de Queiroz para a Academia Brasileira de Letras, tornando-se a primeira mulher a entrar na instituição.
“Se eu tivesse poder, daria a segunda vaga a Dinah Silveira de Queiroz, que conseguiu para a mulher brasileira um lugar ao sol”, acrescenta ela que, como morreu em dezembro daquele mesmo 1977, não presenciou a eleição de Dinah, em 1980.
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Continua Clarice, no bilhete: “Embora eu não deseje morte para ninguém, sugiro que a terceira vaga seja preenchida por Lygia Fagundes Telles”, escreveu ela, sem logicamente saber que a amiga assumiria a vaga em 1985. Finalmente, no mais precioso poder de futurologia, acrescenta Clarice: “E, se Nélida Piñon estivesse na Academia, esta sofreria uma modificação revolucionária, pois Nélida tem coragem para renovar”. Nélida foi eleita em 1989 e, sete anos depois, tornou-se a primeira mulher a assumir a presidência da ABL.
A autora de clássicos como A Paixão Segundo G.H. e A Hora da Estrela mantinha uma estreita relação com seus pares, sem, contudo, sofrer alguma influência. “Com uma única e esplêndida exceção: a contribuição de Fernando Sabino para a elaboração de A Maçã no Escuro, examinando minuciosamente o manuscrito original e oferecendo mais de duas centenas de sugestões, quase todas acatadas por Clarice, para espanto do próprio Sabino”, observa Vasquez. “Esse episódio comprova o fato de que Sabino era um excelente editor, conforme se verá mais tarde com a criação da Editora Sabiá em parceria com Rubem Braga. Mas é, sobretudo, o testemunho de uma grande amizade literária como poucas vezes se viu na história da literatura mundial, já que até mesmo escritores amigos, às vezes, tinham ciúme do sucesso alheio.”
As cartas inéditas que constam no livro – e que foram garimpadas por Larissa Vaz – trazem, de fato, interessantes revelações. Com João Cabral de Melo Neto, por exemplo, Clarice estabelece reflexões sobre a criação literária, justamente em um momento em que a escritora era tomada por diversas questões (“Vontade de achar uma vontade filosófica”, anota ela).
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Com o autor de Morte e Vida Severina, Clarice revela a extensão de seu pensamento artístico. “Cada vez mais acho, como você, que romance não é literatura. Era preciso fazer uma coisa nova, João Cabral, não a bem da literatura, a bem da vida, era preciso espiar de outro modo, era preciso adivinhar mais”. E, como bem observa Teresa Montero, no prefácio, o diálogo a fez afirmar: “Saio de sua poesia com um sentimento de aprofundamento da vida”
O editor Pedro Karp Vasquez confirma que, nas cartas, Clarice mantém com seus interlocutores uma espécie de heterobiografia, ou seja, os dois lados se tornam autores de uma mesma história. “Como bem observou o professor português Carlos Mendes de Sousa, considerado um dos maiores especialistas na obra de Clarice, a correspondência dela tem tanto valor biográfico quanto literário Assim, somadas ambas as vertentes, o que Clarice nos oferece em sua correspondência, correspondente às quatro décadas criativas de sua existência, é de fato uma hetereobiografia capaz de ressignificar ou no mínimo adensar a compreensão de sua obra.”
Vasquez nota ainda que, nas cartas, Clarice deixa transparecer o sentimento de ser uma metáfora do inalcançável literário, como qualificou Caio Fernando Abreu. “Ela sofria as agruras de tal condição olímpica: a incompreensão daqueles que não tinham capacidade de entender sua escrita tão original e pessoal”, comenta o editor.
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“Clarice surge na década de 1940, dominada pela literatura regionalista, com Perto do Coração Selvagem, um livro sem similar no Brasil, tanto que parte da crítica fica desnorteada, buscando filiações inexistentes com autores estrangeiros como Joyce, Proust, Virginia Woolf e depois com Kafka e Katherine Mansfield, quando na verdade, naquele momento específico, ela havia sido inspirada apenas por Hermann Hesse”, explica. “Um comentarista machista não acreditou que o livro pudesse ter sido escrito por uma moça de 23 anos, chegando a afirmar que Clarice Lispector era o pseudônimo de um escritor homem… Mais tarde, Clarice encontraria uma espécie de ‘alma gêmea literária’ em Guimarães Rosa, com Sagarana (1946) e, sobretudo, Grande Sertão: Veredas (1956). Ambos eram, e permanecem sendo, inigualáveis.”
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