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Livro revela o discreto charme dos irrelevantes

Marcelo Moutinho é um escritor com olhar aguçado – enquanto a maioria das pessoas concentra o olhar nas belezas naturais da cidade do Rio de Janeiro, ele, nascido e criado em Madureira, busca as áreas menos privilegiadas, onde vivem personagens comuns, às vezes vivendo à margem, quase na invisibilidade social. É ali em que ele busca inspiração para histórias banais, mas extremamente humanas. É o que se observa em seu novo livro de contos, Rua de Dentro (Record), que ele lançou nessa terça-feira, 4, em São Paulo, na Livraria da Travessa.

São 13 histórias curtas que privilegiam os detalhes, cuja beleza lírica se revela lentamente. Afinal, seus personagens não despertam imediata atenção, mas, à medida que se conhecem seus sonhos e asperezas, a identificação se solidifica. Moutinho consegue provocar surpresas pela simples forma de utilizar as palavras – como no conto inicial, Purpurina. Sobre isso, respondeu, por e-mail, as seguintes questões.

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Qual a relação que esse livro tem com o anterior, Ferrugem, que também apresenta o cotidiano de personagens pouco representados na literatura brasileira contemporânea?
As duas obras se aproximam na perspectiva de reunir histórias situadas no universo da classe média baixa, buscando dar protagonismo a personagens que em geral aparecem como coadjuvantes. A cobradora de ônibus, a senhora que almoça todos os dias no mesmo restaurante de comida a quilo, a costureira, o motorista de táxi… Tanto Ferrugem quanto Rua de Dentro trazem indivíduos de existências aparentemente ordinárias, mas a tentativa é de iluminar a potência de suas vidas, para além dos escaninhos limitadores aos quais os estamentos populares costumam ser relegados: o da violência e o da falta de recursos. No novo livro, trabalho mais fortemente o impacto que a experiência coletiva é capaz de provocar na esfera íntima. As ruas de dentro são aquelas que, a exemplo dos personagens do livro, não têm o glamour da vias principais. Mas são também as ruas que trazemos dentro de nós, como marcas do mundo.

As miudezas do dia a dia normalmente passam despercebidas ao nosso olhar. Para criar seus personagens, você faz qual tipo de pesquisa?
Meu maior campo de pesquisa é a rua. Walter Benjamin dizia que o escritor deve andar na cidade como se estivesse em uma selva. Ele se referia à necessidade de apurarmos os sentidos. Na selva, se você não fica absolutamente atento, a tendência é que pereça. O espaço urbano, contudo, costuma provocar cegueira. Somos cegos de tanto vê-lo, como cantou o Caetano Veloso em O Estrangeiro. Quando a circulação pelas ruas se dá sob a premissa dessa atenção, conseguimos perceber o manancial de personagens, e ideias, e diálogos, que elas nos oferecem. É uma matéria bruta que serve de base, de inspiração, para o trabalho ficcional.

Você acredita que os personagens de seus contos são mais representativos do Rio de Janeiro? Ou teriam um aspecto mais nacional?
Na época em que eu morava em Madureira, via o Méier, bairro vizinho e igualmente suburbano, como uma espécie de Ipanema. Um lugar mais chique, mais valorizado. A relação periferia/centro se fazia presente, mesmo que no âmbito de um microcosmo. Nas diferentes cidades e bairros do País, isso também acontece, não é algo exclusivo do Rio de Janeiro. Além disso, a exclusão familiar, a tentativa de normatização dos corpos e do desejo, a intolerância religiosa, os conflitos familiares, são temas que transcendem fronteiras estaduais. Assim como o próprio tipo de personagem que protagoniza o livro, oriundo da classe média baixa. O indivíduo que tem um emprego sem grande charme, trabalha para pagar as contas, toma sua cerveja depois do expediente. Que só quer ser feliz.

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O conto é um gênero nem sempre bem compreendido – como explica sua atração por esse tipo de narrativa?
Mais que mal compreendido, o conto é um gênero maltratado dentro do universo literário brasileiro, das editoras às premiações. As exceções só confirmam a regra. Minha opção pelo conto se deve ao fato de que as histórias que imaginei até hoje pediam uma narrativa curta. E são elas que definem sua extensão. Não vou me forçar a escrever um romance porque o mercado assim o exige. Não escrevo ficção para agradar ao mercado. Em todos os livros, no entanto, procuro certa organicidade. Eles não são um mero ajuntamento de contos, há sempre alguma lógica para o recorte, seja temática, seja de ambiência.

Você acredita que a literatura está dando conta da realidade de hoje, que é tão complexa e acelerada?
A realidade anda tão inverossímil que a literatura está tomando de 7 x 1, como o Brasil contra a Alemanha. Mas acredito, sim, que diante da lógica dual e simplista em vigor, os livros de ficção e de poesia podem trazer uma bem-vinda complexidade no olhar para o mundo. Fora do dogma e da certeza.

A amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos?
Difícil não estar minimamente amargurado no atual momento político-social. E, de certa forma, Rua de Dentro é também uma reação a esse momento, ao trazer histórias que tratam de relações homoafetivas, que se passam no espaço da favela, que mostram as cruéis consequências do machismo e da homofobia na vida das pessoas. São temas incômodos para parte da sociedade brasileira. Voltando à sua pergunta, talvez um dos grandes problemas contemporâneos seja o mal-estar que nasce do cotejo com a vida alheia. Vidas editadas, diga-se. O sujeito olha para a persona virtual do outro e se sente menor, menos antenado, menos divertido. Aquela alegria de tinta guache não resiste a um escrutínio mais detido, mas é suficiente para causar angústia.

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Seus contos têm uma melancolia discreta?
Acho que sim. Talvez porque não acredite nessa alegria compulsória e sem meios-tons que tanto sucesso faz hoje. Como grande fã do gênero, lembro-me dos versos de Vinicius de Moraes e Baden Powell: “O samba é tristeza que balança”. Esse aparente paradoxo está muito próximo do que é a vida da gente. E, como busco uma literatura próxima da vida da gente, a melancolia faz parte dela.

TI

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