O mundo de hoje nos confronta com uma cena que, não sendo nada fora de propósito diante do que testemunha, tenderia a constituir um disparate. Um adolescente, mergulhado no universo digital e na interação das mídias sociais, pode estar sentado em seu quarto, com fone de ouvido e navegando na internet, a fim de ouvir como passarinhos cantam – num mundo natural cada vez mais distante das novas gerações, nascidas e criadas em meio urbano feito de ferro e cimento e tomado por máquinas. Enquanto o jovem aprecia vídeos na tela, a metros dele, no parapeito da janela, um passarinho pousado estará entoando as melodias que ainda se pode ouvir em alguns espaços no mundo natural, até mesmo nas cidades.
Esse é um hipotético cenário do que se tem visto na turbulenta sociedade contemporânea, em que os pássaros e os demais animais (pequenos, médios ou grandes) tentam exercitar seus dons (para expressar alegrias ou tristezas, ou para cortejar, no rito do acasalamento) em meio à balbúrdia e aos altos decibéis de carros e equipamentos de sons. E é como um esforço de contraponto, de reeducação dos ouvidos (e, em maior medida, de resgate da sensibilidade perdida ou sufocada), que uma professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Ilza Zenker Leme Joly, de São Carlos, cidade com mais de 250 mil habitantes a cerca de 230 quilômetros da capital paulista, empreendeu um esforço no sentido de reunir elementos do cancioneiro brasileiro que remetem à interação com os passarinhos.
O projeto resultou no livro No encanto dos passarinhos, lançado pela editora da própria UFSCar no segundo semestre de 2019. Ilza mobilizou uma série de parceiros para expandir sua pesquisa do levantamento das letras das canções, muitas arraigadas no imaginário regional ou nacional, para a fixação de melodias e até a gravação das músicas. Assim, referências que já estão na música popular, nas canções infantis ou na MPB ganham ritmos delicados e divertidos com arranjos e partituras de Lucas Joly, compositor, arranjador, regente e produtor cultural, e de Vinícius Sampaio, compositor e arranjador. Para a edição da obra, Ilza estabeleceu parceria ainda com a artista plástica Solange Lopes, que deu traço e cor às espécies de pássaros mencionadas nas canções.
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O resultado é um volume de 92 páginas, com texto bilíngue, português e inglês, que passa a constituir uma espécie de fixação e de divulgação do rico e variado cancioneiro associado a aves brasileiras. Para as gerações atuais e as do futuro, é um convite a mergulhar na cultura popular em uma de suas variantes mais afetuosas: afinal, se os seres humanos, ao explorar e exercitar seus dons, entoam cantos e compõem melodias, apenas fazem o que nos pássaros é vital, inerente e natural, como via de expressão e de comunicação de cada espécie e para toda a sua existência. Cantar e piar é a forma como os pássaros comunicam ao mundo seus estados de ânimo, e, para os humanos, ouvi-los é partilhar da magia da sinfonia que nos cerca.
FICHA
No encanto dos passarinhos: canções para cantar, dançar, tocar e brincar, de Ilza Zenker Leme Joly. Com ilustrações de Solange Lopes e arranjos e partituras de Lucas Joly e Vinícius Sampaio. São Carlos (SP): EdUFSCar, 2019. 92 p. R$ 85,00.
“É um apelo para prestar atenção”
A pesquisa de Ilza Joly foi esboçada como contributo a popularizar canções populares, infantis ou adultas, relacionadas a passarinhos de diferentes regiões brasileiras, bem como para inspirar cantigas de roda em ambientes de ensino e educação – e ainda para motivar apresentações musicais e, claro, brincadeiras. “É um apelo para que a gente preste mais atenção a esses pequenos seres, e que a gente cuide deles, que eles estejam livres e que se mantenham na natureza, mantendo também o equilíbrio ecológico”, ressalta a autora.
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Mas o primeiro efeito certamente é o de advertir para as demandas urgentes dos passarinhos no mundo natural (seu habitat por direito no conjunto das espécies). “Sempre observei as aves, me encantando com aquelas que habitavam meu quintal”, diz Ilza. “Da mesma forma, a Solange observa, alimenta e se encanta com os passarinhos que visitam seu quintal. Pensamos então que seria muito bom compartilhar nosso encantamento com crianças e adultos e, quem sabe, ajudar a preservar a natureza.”
A existência de cada vez menos bosques e espaços em que estejam disponíveis os insetos, as frutas e as plantas de que necessitam para se alimentar leva as espécies de aves a uma gradativa migração de seus habitats para ambientes onde outros tipos de potenciais alimentos estão disponíveis. Eles deixam as matas, as florestas, os descampados para migrar para o cinturão urbano, os parques e as praças das cidades, de pequeno, médio ou grande portes, em busca de proteção, de fontes de alimentos (embora já em nada sejam os alimentos com os quais estavam acostumados ao longo do tempo). Assim, acabam assumindo até mesmo comportamentos bem estranhos a sua natureza, como perambular por quiosques e restaurantes.
Nas extensões do meio rural, a agricultura intensiva, que adota pacote tecnológico apoiado em agrotóxicos, compromete o equilíbrio do meio ambiente ao eliminar insetos e organismos que ofereciam alimento aos pássaros, ao mesmo tempo em que os contaminam ou envenenam. Por isso, os pássaros vão ficando confinados a ambientes cada vez mais limitados ou restritos. É essa realidade, em que as necessidades e os “direitos” à existência de muitas espécies são ignorados em nome do imediatismo e do “progresso”, que o livro também ajuda a denunciar.
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Antes e acima de tudo, revela o empenho em favor de uma sensibilização em maior escala. Quem sabe, ao tomar contato com o livro, em nome de uma primeira curiosidade pelos pássaros de sua região, um adolescente tire o fone de ouvido, desvie a atenção do celular e então descubra que há um passarinho pousado no parapeito da janela. Ao abri-la, descobrirá ainda que dezenas de outros já estão entoando a sinfonia do mundo como ele deve ser – como a cada dia é um pouco mais impedido de ser.
A sinfonia da natureza em 12 canções reunidas num CD
O livro organizado por Ilza Zenker Leme Joly, em capa dura e papel cuchê, recupera 12 canções do imaginário popular das regiões brasileiras. Elas são acompanhadas de informações sobre a música em si e sobre os passarinhos que estão tematizados na letra, além de uma ilustração de Solange Lopes e da partitura.
A autora ainda elenca uma série de sugestões de brincadeiras de roda, de danças ou cantos que podem ser executadas por monitoras, professoras ou mães com crianças de diferentes idades. Ao final, o livro traz um CD com as 12 canções gravadas por uma banda formada por vozes, cello, vibrafone, flauta doce, sanfona, bateria, percussão, trompete, sax soprano, sax alto, clarinete, clarone, baixo elétrico, guitarra, violão, surdo e um coral com três crianças.
Estão contempladas no volume espécies típicas dos ambientes naturais das diversas regiões, como o periquito maracanã, os periquitos diversos, a pombinha, o papagaio, o sabiá, a saracura, a araruna, o mutum, o gavião, o tangará, a rolinha e a coruja.
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“A pombinha voou”
Pombinha, quando tu fores,
escrevas pelo caminho;
Se não achares papel,
nas asas de um passarinho.
Da boca faz um tinteiro,
da língua, pena dourada,
dos dentes, letra miúda,
dos olhos, carta fechada.
A pombinha voou, voou, voou.
Ela foi-se embora e me deixou.
A pombinha voou, voou, voou.
Ela foi-se embora e me deixou.
“Sabiá lá na Gaiola”
Sabiá, lá na Gaiola, fez um buraquinho
Voou, voou, voou, voou.
E a menina que gostava tanto do bichinho
Chorou, chorou, chorou, chorou.
Sabiá fugiu pro terreiro
Foi cantar no abacateiro.
E a menina pôs-se a chamar:
vem cá, sabiá, vem cá.
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