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Livro conta por onde andou Belchior nos quase dez anos que viveu anônimo

Seria um tanto improvável em um enredo ficcional que um astro da MPB, tendo nascido em 26 de outubro de 1946 em Sobral, no interior do Ceará, junto ao Atlântico norte, viesse a morrer aos 70 anos completamente anônimo no extremo oposto do País, em Santa Cruz do Sul. Mas a vida real trabalha com todas as possibilidades, verossímeis ou nem tanto, e assim se espalhou a notícia de que Antonio Carlos Belchior, ou simplesmente Belchior, ídolo cultural de gerações, encerrara sua existência na madrugada de 30 de abril de 2017, em residência nos subúrbios de Santa Cruz, na qual morava já há mais de um ano, ao lado da sua companheira, Edna Assunção de Araújo, a Edna Prometheu.

O casal residia em uma casa confortável de dois pisos, cedida por um jovem investidor e empresário, e poucos, pouquíssimos sabiam da presença do astro da música no local. No último dia 30 de abril completaram-se quatro anos desde a morte de Belchior, cujo corpo foi posteriormente transladado a sua terra natal, Sobral, onde foi velado, com o sepultamento no jazigo da família no Cemitério Parque da Paz, em Fortaleza, capital cearense.

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Encerrava-se ali a trajetória de uma das mais enigmáticas figuras da cena artística nacional. Afinal, há cerca de uma década Belchior e Edna haviam deixado tudo para trás em São Paulo, iniciando um périplo rumo pelo sul. De boa parte dele as circunstâncias ou as motivações permaneceram incógnitas. Depois de sua morte, Edna, que acompanhou os atos fúnebres no Ceará, uma vez mais sumiu sem deixar pistas.

Rastros

Foi diante de tantos fatos desconexos ou fios soltos que os jornalistas Chris Fulcaldo e Marcelo Bortoloti se animaram a colocar os pés na estrada e percorrer, até onde era possível, parte desse percurso feito por Belchior e Edna em sua “fuga”. O resultado de suas buscas ou investigações está no livro-reportagem Viver é melhor que sonhar: os últimos caminhos de Belchior, lançado em abril, por ocasião dos quatro anos de morte do cantor, pela editora carioca Sonora, em 264 páginas, ilustrado com inúmeras fotos que os autores obtiveram no caminho.

Chris e Bortoloti iniciaram sua jornada investigativa meses após a morte de Belchior, e fizeram uma eficiente recuperação do cenário imediatamente anterior ao sumiço dele, por volta de 2007. Também contextualizam as circunstâncias em que Edna, uma pouco conhecida produtora cultural, aproximou-se dele, e quando Bel, em simultâneo, afastou-se cada vez mais de sua mulher e dos dois filhos, cortando laços com toda a sua família, inclusive os irmãos no Ceará.

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Os repórteres viajaram ao Uruguai, onde rastrearam ao máximo possível o percurso e os locais onde o casal morou, incluindo os hotéis dos quais saíram sem pagar a conta, e as famílias que os acolheram. Até o momento em que Belchior e Edna chegaram a Porto Alegre, para ali viver nas mesmas condições anônimas, e foram conduzidos para o interior, sempre acolhidos por fãs ou pessoas que se condoíam de sua situação.

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E assim, em meados para o final de 2013, seis anos depois de partirem de São Paulo, Bel e Edna chegaram a Santa Cruz. Primeiro para uma breve estadia na ecovila Caraguatá, em Rio Pardinho, e logo depois para sucessivas hospedagens junto a famílias e a locais no ambiente urbano. Para o livro, Chris e Bortoloti refizeram tais percursos, conversaram com pessoas que os acolheram (sempre mantendo a informação sigilosa), até o momento em que o casal pôde se acomodar em uma confortável casa de dois pisos, cedida. E na qual o artista viria a morrer, vitimado pelo rompimento de uma aorta do coração.

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Mas a rotina que Belchior e Edna enfrentaram nos dez anos de andanças pelo sul do País e pelo Uruguai não teve nada de idílio, sendo muito mais marcada por privações e pela constante retórica de perseguição, em especial da mídia (e, claro, também de credores, estes talvez com toda a razão). Por mais que se busque motivações ou explicações para o gesto de Belchior, astro da música que era e sempre seria, nessa sua evasão em relação à vida familiar e pública, qualquer conclusão, definitivamente, sempre escapa por entre os dedos, ou à compreensão. Fica, da leitura dessa reportagem com tonalidade on the road, muita pauta para reflexão. A história, pelo visto, não acaba aqui.

FICHA

Viver é melhor que sonhar: os últimos caminhos de Belchior, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. São Paulo: Sonora, 2021. 248 p. R$ 59,80.

“Santa Cruz do Sul é uma cidade arborizada, com ruas largas, comércio farto e algumas dezenas de prédios não muito altos, salpicados por entre as casas. Município rico, com 130 mil habitantes e milhares de pequenos produtores rurais plantando fumo para a grande indústria do cigarro no país. Uma população quase toda branca, descendentes de alemães, alguns ainda praticando a língua original de seus antepassados, com mulheres de traços nórdicos e certa segregação racial pairando silenciosamente no ar. Não deixava de ser, apesar disso, um território agradável, com uma catedral gótica imponente na avenida principal, idosos sorridentes tomando sol nos bancos de praça, o trânsito gentil e o clima frio, de ar limpo e gostoso de respirar. Lugar perfeito para se aposentar e passar os últimos dias. Belchior foi levado até ali por acaso e, diante das circunstâncias, acabou ficando até sua morte. Não fosse um movimento involuntário, poderia ser considerada uma bela escolha.”

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