Cultura e Lazer

Livro aborda o peso de ser o pai de um gênio da música

Leopold: uma novela, o novo romance do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, lançado em 2023 pela editora mineira Zain, é um convite a uma instigante viagem, que se inicia em uma estação de posta situada entre Viena e Salzburg. Ali o personagem Leopold Mozart embarcará, alta noite, “em uma diligência postal de dois cavalos”, num ponto adiante de Munique, junto de um casal que será a sua companhia durante o percurso.

Pelas informações prévias que o leitor possui, ao ter contato com o livro, saberá que o personagem principal é ninguém menos do que o pai de um gênio da música, Wolfgang Amadeus Mozart. Leopold retorna de visita a Viena, e ali teve a constatação de que seu filho já é considerado nada menos do que o maior compositor de todos os tempos. E é para assimilar o impacto e o significado dessa informação que ele, na condição de pai e mentor do filho, “conta” sua história ao casal que com ele viaja (e que, no entanto, tira uma soneca).

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Em termos de foco narrativo, ainda que o livro tenha breves passagens em terceira pessoa, predomina o vertiginoso fluxo de consciência, em que Leopold detalha as circunstâncias nas quais se ocupou de criar e educar Wolferl (como chama, na intimidade, o filho mais novo) para o estrelato. É transparente nos sucessos e nos insucessos de sua empreitada (ou, como resume, em certa passagem, “é da vida”).

Ele próprio um músico esforçado, compositor e professor, idealizou para si a incumbência (algo divina) de forjar um gênio (que, como frisa, em dado momento até se encontrou com outro gênio, Goethe). Mas quando Wolfgang se independeu e decidiu se transferir sozinho para Viena, Leopold deu-se conta de que, na verdade, o filho estava muito mais à frente no tempo do que ele próprio poderia supor ou imaginar.

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Leopold marca a estreia (digna de aplausos) da Zain no mercado editorial brasileiro, e pode ser adquirido nas livrarias físicas ou virtuais por R$ 74,90, num total de 296 páginas. O romance reafirma o virtuosismo absoluto de um mestre da literatura, como escritor e professor de uma das mais conceituadas oficinas de criação literária do Brasil, mantida junto à PUCRS.

“Haydn se ergueu, todos se ergueram, e ele, depois de cumprimentar e agradecer a Wolferl pela dedicatória, uma honra imerecida, assim o disse, e depois de cumprimentar os barões Tinti, ele com pausa se voltou para mim, todos ficaram atentos, Wolferl mais do que todos, algo importante iria acontecer, então Haydn pousou a mão trêmula sobre meu ombro, fixou-me os olhos negros, lustrosos de sentimento e verdade, de lágrimas, então ele disse, Herr Mozart, afirmo ao senhor, perante Deus e como homem honrado, seu filho é o maior compositor que eu conheço, tanto em pessoa como de nome. Um calor instantâneo me queimou o pescoço e subiu pelo rosto, (…)” – Trecho do livro Leopold: uma novela, de Luiz Antonio de Assis Brasil

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“Que se leiam os clássicos”

É praticamente impossível para um leitor gaúcho (e brasileiro) não saber quem é Luiz Antonio de Assis Brasil. Afinal, aos 78 anos, esse porto-alegrense é não apenas um mestre como autor de alguns dos mais marcantes romances já elaborados por autor nascido no Estado, além de um professor universitário referencial para gerações. E, junto à universidade, ao lado de sua exitosa carreira como docente no curso de Letras, na PUCRS, é respeitado e admirado por conduzir uma oficina de criação literária, na mesma instituição.

Enquanto romancista, suas narrativas ficcionais mantêm um contato muito forte e íntimo com a História. É em diferentes épocas do passado, estadual, nacional ou global, que ele identifica personagens a partir dos quais constrói seus enredos. Pelo menos em três delas, a música ocupou espaço central ou privilegiado, como foi o caso de Concerto campestre, de 1997.

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Uma de suas obras mais recentes fora justamente uma contribuição voltada a todos os que, supostamente, tivessem como desejo dedicar-se à literatura, como autores. Em Escrever ficção: um manual de criação literária, de 2019, compartilhou algumas de suas descobertas ou de seus ensinamentos do período de 34 anos conduzindo a oficina e ainda ministrando aulas na PUCRS.

Agora, em seu novo romance, mais uma vez lida com a música, ele que foi violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. E, ao leitor, não escapará de fato o domínio de Assis Brasil nessa temática, de modo que Leopold: uma novela constitui também uma homenagem à arte musical, e a um dos maiores gênios da composição em todos os tempos, Mozart (e ao pai dele, claro). Em entrevista exclusiva, por e-mail, deixou um recado: que se siga lendo, de preferência os clássicos.

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Entrevista – Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor

  • Magazine – Quais foram os principais desafios com os quais o senhor teve de lidar a fim de caracterizar, na época em que ele viveu, o personagem Leopold, pai de Wolfgang Amadeus Mozart?
    Os desafios não foram tão grandes, dado que eu tinha um grande acúmulo de conhecimento acerca da família Mozart, fruto de minha curiosidade em conhecer os pormenores das pessoas que circulavam na segunda casa, em Salzburg. De certo modo, eu já era um familiar daquele sobrado da HannibalPlatz. Foi apenas o trabalho de recuperar minha memória pessoal e acrescentar outras, derivadas das pesquisas.
  • Como é a relação do senhor com a obra de Mozart? E o que, nesse sentido, motivou o romance centrado no pai dele?
    Desde criança eu me pus na cabeça que Mozart era o músico, de tantos, que mais me impressionava, especialmente sob o aspecto da invenção melódica. Não que o coloque acima dos outros grandes, como Bach ou Haydn; cada qual tem sua vida e seus ouvintes. Mas o que mais escuto é Mozart.
  • Em que medida a narrativa em torno da vida do pai de Mozart, e em torno desse músico, difere em relação às pesquisas realizadas por ocasião de romances anteriores, em vários dos quais o senhor recuperou personagens históricas?
    Essa pesquisa é diferente porque minhas anteriores histórias traziam personagens mais próximas no tempo, no espaço e na cultura. Já em Leopold o salto é grande. Vai para o final do século 18, e para uma cultura iluminista misturada a uma forte tradição católica romana e a uma música que se transformava do Classicismo para o Romantismo nascente, com todas as perturbações daí decorrentes, inclusive entre pai e filho.
  • Como foi o processo de levantamento de informações? O senhor chegou a visitar as regiões mencionadas no romance?
    Uma obra dessa magnitude implicaria, como muito natural, uma forte pesquisa bibliográfica. Só de livros foram mais de 200, facilitada, porém, por edições digitalizadas em bibliotecas pelo mundo inteiro. Mas também houve a pesquisa de campo – que eu, sem o saber, já vinha fazendo, como turista em cidades de interesse mozartianos. Agora, voltei por três vezes a Salzburg, por exemplo.
  • O senhor tem contribuição muito forte, e longa, como professor de importante oficina literária junto à PUC. Como avalia os efeitos desse esforço em uma cena literária atual marcada pela publicação de obras de seus alunos?
    Considero ter feito uma boa obra, no decorrer desses quarenta anos; não exatamente no sentido de ensinar a escrever, mas de propiciar condições tecnicamente adequadas para que os alunos possam escrever novos textos. E que esses textos possam ser discutidos com seus colegas e, assim, aperfeiçoados.
  • Como o senhor situa a literatura gaúcha, e a brasileira, perante o que se publica em outras regiões no mundo na atualidade?
    Não é mais possível usar o sintagma “literatura gaúcha”, no sentido como o declinávamos há 30 anos, a não ser que se fale de uma literatura produzida por escritores que vivam no Rio Grande do Sul, e esses escritores do que menos falam são dos assuntos regionais. Quero dizer: a construção da cultura da Metade Sul do Rio Grande do Sul, por seu artificialismo e seus clichês, já não atrai leitores nem escritores. Assunto esgotado. Hoje praticam-se variados temas urbanos, críticos, universais, existenciais, filosóficos, de atenção às minorias até agora invisíveis – ou visíveis sob a forma caricatural – e, ainda, temas dedicados a questões de gênero. Enfim, o termo pode existir, mas com conteúdo completamente outro, longe de saudosismos e de sentimentalismos.
  • O senhor está satisfeito com a forma como a literatura é tratada ou trabalhada, dentro e fora da sala de aula? O que o senhor gostaria de ver implementado ou implantado, em favor da leitura?
    Que se leiam os clássicos. Criaram-se preconceitos contra os clássicos, quando são eles que estabelecem o traço de união entre o que é consolidado como patrimônio da sensibilidade humana e os modernos meios de expressão, inclusive sob o aspecto linguístico/estilístico. Os alunos devem compreender que a literatura não começa com seus textos, mas, sim, é uma corrida de bastão que já tem 2 mil anos. A questão a seguir é a metodologia, que vejo muitas vezes equivocada: começam pelos clássicos para então, num dia futuro, estudar os contemporâneos. É tudo ao revés: deve-se começar pelos contemporâneos e, a cada vez que caiba, fazer uma aproximação com um clássico. Esse método dará sentido ao texto clássico e, ao mesmo tempo, iluminará o contemporâneo.
    Os alunos ficam maravilhados com a descoberta de que a literatura é uma coisa só, não importa em que época foi escrita, e mais: que na cultura tudo está interligado. Ao estudar Clarice Lispector, que tal estudar também Virginia Woolf? Ao estudar Machado de Assis, nada melhor do que ver junto Eça de Queiroz. E última coisa: que tal ler um pouco mais os autores estrangeiros? O Brasil não tem a melhor literatura do mundo, temos de concordar.
  • O que o senhor entende que seja pré-requisito indispensável para todo aquele que deseje deixar sua marca de forma positiva na literatura, caso ambicione uma carreira literária?
    Que procure escrever o novo, algo que nunca alguém escreveu, e que, portanto, instigue a curiosidade do leitor e resulte na epifania estética.

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Romar Behling

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