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LIVERPOOL: Riqueza e sofrimento no triângulo marítimo

Nas aventuras de Robin Hood, o Príncipe João, irmão do Rei Ricardo I, o Coração de Leão, é um dos vilões da história. O mesmo nobre brigão, ao se tornar Rei João da Inglaterra, fundou em 1207, no estuário do Rio Mersey, a 3 quilômetros do mar, a cidade de Liverpool.

Aproveitando um feriado britânico, tomei um trem para retornar à cidade de 500 mil habitantes, dessa vez com o objetivo de visitar dois museus. O primeiro, a Galeria de Arte Walker e sua espetacular coleção de pinturas e esculturas. A propósito, em número de museus e prédios históricos, Liverpool só perde no Reino Unido para Londres, figurando entre as principais cidades da Europa.

Ao sair da Estação Lime Street, avisto o magnífico St. George’s Hall, construção neoclássica que impressiona quem desembarca na cidade. Perto dali está uma das melhores salas de concerto da Europa, a Phillarmonic Hall. Às margens do Mersey, destacam-se as docas (Albert Dock é a mais famosa) e três marcos arquitetônicos conhecidos como as três graças, além de dezenas de pontos de interesse histórico e artístico. Se, além das artes, o interesse for esportivo, vale a visita ao Estádio Anfield, templo de uma das melhores equipes de futebol do planeta. Além dos craques Salah e Mané, o Liverpool FC conta atualmente com a espinha dorsal brasileira formada por Alisson, Fabinho e Firmino.

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A riqueza que aportou em Liverpool, principalmente entre os séculos 17 e 19, foi resultado do comércio marítimo. O porto da cidade, até hoje o mais extenso no mundo, tem 12 quilômetros de extensão. A alavanca do sucesso econômico foi o lucrativo triângulo comercial transatlântico, que levava tecidos, armas e outras mercadorias da Inglaterra para a África, africanos escravizados para as Américas e, no retorno à Grã-Bretanha, produtos do novo mundo como açúcar e algodão, este diretamente para as tecelagens da vizinha Manchester.

No século 18, as embarcações de Liverpool dominavam o tráfico de escravos, responsáveis pelo transporte de mais de 1,5 milhão de cativos para as Américas, e impulsionavam traficantes de outros países europeus e do Brasil. A escravidão arrancou 12 milhões de africanos de seu continente, destituídos de sua identidade e tratados como animais. A tragédia segue presente nas consequências, positivas para a economia europeia e desastrosas para a grande maioria dos habitantes da África e das Américas. A Inglaterra, mesmo após sua abolição em 1833, seguiu lucrando por décadas com os produtos da escravidão descarregados em Liverpool.

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A poucos metros das docas nas quais navios negreiros eram construídos, cumpri o segundo objetivo da visita: O Museu Internacional da Escravidão, um dos únicos sobre o tema no mundo e, de longe, o mais completo e bem organizado. Ali se entende o papel da escravidão no desenvolvimento da cidade e da Europa, evidenciando a chaga deixada pela abominável prática.

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Painéis, maquetes e objetos originais apresentam a cultura e o desenvolvimento africano anterior ao século 16, progresso que foi travado pela ganância e desumanidade de europeus, brasileiros e americanos. A exposição honra o trabalho e a técnica dos escravizados, avultada por descendentes que inspiram e se destacam na música, ciência, literatura e política. Entre centenas de personalidades, estão retratados os brasileiros Pelé, Gilberto Gil, Benedita da Silva e o mestre da capoeira Vicente Pastinha.

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O Brasil, país que mais recebeu escravizados e último nas Américas a abolir a escravidão, tem o maior número de pessoas que sofrem com as sequelas de uma abolição burocrática, que indenizou generosamente donos de escravos mas jamais deu chance de recuperação às reais vítimas. Ainda assim, ou quem sabe por isso, não temos um museu do gênero e, bem mais importante, não há até hoje uma legislação estruturada e inteligente de antirracismo.

Mecanismos de reparação baseados em dados históricos e em humanidade implantados em muitos países, como cotas em escolas e universidades, participação política e empresarial, são até combatidos com truculência e ressentimento por quem ainda usufrui, ou imagina se beneficiar, do abismo social brasileiro. Muitos alegam não ter culpa pelo passado, mas seguem privilegiados pelo arcaico racismo estrutural. Ainda não acordaram para o fato de a escravidão ser nossa maior ferida histórica, que engessa qualquer tentativa de realizar o potencial que o país sempre teve, gerando ainda a brutalidade e o desprezo que oprimem negros e pobres no Brasil.

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Através da educação, em algumas gerações, essa questão que jamais poderá ser esquecida talvez se torne tópico natural e efetivo de programas de governo, políticas públicas e governança no setor privado, proporcionando alguma esperança de uma nação menos violenta e mais justa.

*Por Aidir Parizzi Júnior

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caroline.garske

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