No dia 15 de julho deste ano, a Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul aprovou uma lei que declara a língua alemã patrimônio histórico e cultural do município. Autor da proposta, o vereador Raul Fritsch (Republicanos) defendeu a necessidade de fomentar o idioma não só para valorizar os imigrantes, mas também para abrir portas e gerar oportunidades educacionais e turísticas.
A língua alemã é considerada um dos principais legados deixados pelos primeiros imigrantes que vieram povoar a Colônia Santa Cruz a partir de 19 dezembro de 1849. Da Alte Pikade, que integrou a segunda fase do processo migratório alemão no Rio Grande do Sul, o idioma se espalhou pela região.
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Com a proximidade dos 175 anos da imigração em Santa Cruz, o alemão segue vivo em todo o município, de diferentes maneiras, e usando-se uma variedade de dialetos. Em especial no interior, onde está presente no cotidiano dos moradores.
Por quase um século desde a chegada dos primeiros colonos, em 1849, o idioma pelo qual se comunicavam os imigrantes europeus predominou em Santa Cruz. Como a maioria sabia ler e escrever nessa língua, também incorporou o alemão nas salas de aula, na educação das crianças e dos adolescentes, o que contribuiu para a preservação desse elemento cultural.
A língua alemã era a de comunicação constante no cotidiano da população, em especial nas localidades mais afastadas dos núcleos urbanos. Mas inclusive nestes permanecia, no ambiente familiar ou até mesmo na interação social no comércio, nas igrejas ou em eventos diversos, coexistindo ao lado do português. Este, por sua vez, foi o idioma que muitos dos colonos ou seus descendentes tiveram de aprender para se comunicar com todos os demais que não tivessem ascendência alemã.
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No entanto, tudo mudou com a Campanha de Nacionalização, instituída por Getúlio Vargas durante o Estado Novo, em 1937. A partir disso, o uso da língua foi proibido ou, no mínimo, inibido, forçando os colonos europeus a se expressarem apenas em português (que, no entanto, muitos deles sequer compreendiam ou dominavam). Essa fase, ou essa perseguição, foi bastante traumática para muitos deles. É o que inclusive evidencia o jornalista e escritor Benno Bernardo Kist, profissional da Gazeta, em seu novo livro, Peter & Lis: quando era proibido falar a própria língua.
Com o avanço da língua brasileira em toda a área colonial, o uso do dialeto dos imigrantes foi perdendo força, mesmo após o fim da Era Vargas. Contudo, enquanto na área urbana do município o alemão se tornou um segundo idioma, os moradores do interior empenharam-se em manter esse elemento cultural dos antepassados. E assim segue em pleno século 21.
Atualmente, escuta-se a língua dos pioneiros na maioria das localidades interioranas. É o caso do Distrito de Monte Alverne. Lá os imigrantes começaram a chegar em 1861, de diferentes regiões da Europa, além de alguns que já habitavam as colônias de São Leopoldo e de Santa Cruz. A 27 quilômetros do centro urbano, e com aproximadamente 4,6 mil habitantes, em Monte Alverne o idioma segue presente no cotidiano dos moradores, sendo, por vezes, até mais comum de ser ouvido do que o português (ou “brasileiro”, como dizem).
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Para a maioria dos moradores, a opção por usar o idioma dos antepassados se deve ao fato de o terem aprendido em seus primeiros anos de vida, ainda em família. É cultural, pois avós e pais costumam falar alemão em casa e, portanto, as crianças ouvem essa língua constantemente. Assim como os mais velhos ainda se expressam nesse idioma em família, o fazem também em encontros com vizinhos ou amigos, na comunidade.
Logo, quando se caminha pelas ruas ou passeia junto a estabelecimentos ou residências, pode-se escutar conversas animadas em língua alemã. E, com ela, resistem e avivam-se muitos outros elementos da cultura dos antepassados, como o canto, as danças e a culinária.
Em frente ao Ponto dos Amigos, tradicional local de encontro dos moradores de Monte Alverne, os agricultores Arlindo Scholz, Roque Reis e Perci Justen se reuniram em torno de uma mesa para contar os últimos causos da localidade. O bate-papo, é claro, é em alemão.
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Semanalmente, o trio encontra-se para uma prosa no idioma. Mantém a tradição há pelo menos uma década, sempre acompanhada de uma cerveja. Scholz, 86, acostumou-se a falar a língua dos seus antepassados. Relata dificuldade em falar português. “Prefiro o alemão, assim não me confundo”, afirmou o produtor de tabaco aposentado.
Natural de Itapiranga, Santa Catarina, Reis, 66 anos, cresceu distante dos hábitos brasileiros, de tal forma estava identificado com a cultura alemã. E, ao mudar-se para o distrito, sentiu-se em casa. “Pude manter o alemão. É só o que eu falo.”
Para Justen, 52, o mais novo do grupo, preservar o idioma dos colonizadores é importante. “É o legado deles, não podemos deixar que caia no esquecimento”, ponderou. Desse modo, ajudou a ensinar a língua aos netos. “Sabem tudo, e gostam de falar”, contou.
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Para o trio, há beleza na maneira como o alemão é pronunciado. Diante do predomínio na localidade, encarar o português se torna mais difícil. “Tem momentos que esqueço as palavras em português, de tanto que falo alemão”, afirmou Justen.
Responsável pelo estabelecimento, Clardes Giehl testemunha há 16 anos os diálogos no idioma europeu. O atendimento, na maioria das vezes, acontece dessa maneira. Para ela, causa estranheza não ouvir um pedido em alemão. E, ao caminhar entre as mesas, para garantir que nenhum cliente fique com o prato ou o copo vazio, acompanha as conversas proferidas assim como seus familiares o faziam. “É maravilhoso de escutar”, admitiu.
Moradora da Linha Felipe Neri, a família Kuntz participa das feiras em Monte Alverne para comercializar os alimentos produzidos na propriedade, de aproximadamente 10 hectares, incluindo rabanete, batata-doce e outras hortaliças. Patriarca da família, Romeu Kuntz, 69, ensinou o filho Emerson, 25, a falar em alemão. “Era a única que eu sabia até chegar na escola”, afirmou o jovem. Teve dificuldade em aprender o português; hoje, considera-se fluente nas duas línguas. No entanto, prefere a germânica, com a qual se habituou desde cedo.
A história do filho não é diferente da do pai, que só descobriu o idioma português no educandário. Embora tenha se dedicado a transmitir essa herança aos seus descendentes, defende a necessidade de ser fluente nas duas. “Não tem como você trabalhar no comércio falando só um idioma, tem que saber os dois”, enfatizou. Para a família Kuntz, falar alemão é motivo de orgulho. Acredita que o idioma é uma forma de valorizar o legado dos imigrantes que oportunizaram o desenvolvimento da região.
A depender de Emerson, a tradição seguirá na família. E quando tiver um filho, espera poder seguir os passos do seu pai, e ensinar essa língua e destacar os feitos dos responsáveis por povoar Santa Cruz. “A língua alemã sempre vai falar mais alto para mim”, garantiu.
O médico Aloisio Bersch atua no Hospital de Monte Alverne há 51 anos. Natural de São Lourenço do Sul, mudou-se para o distrito santa-cruzense em 2 de fevereiro de 1973. Afirma com convicção que já prestou atendimento a quatro gerações de moradores. Em seu consultório, predomina o uso da língua alemã. “90% dos atendimentos são assim”, afirma. Comumente, usa o idioma para escrever o receituário e dar orientações. Isso permite que os pacientes expressem com mais facilidade os sintomas, além de que entendam o tratamento. “Para o médico, o principal em uma consulta é escutar os pacientes, olhar para eles e compreender o que estão sentindo. O resto é consequência.”
Na visão de Bersch, o apego ao idioma trazido pelos imigrantes está atrelado à nostalgia, remetendo a um passado distante, no qual não se cogitava falar em outro dialeto além do alemão. “É uma tradição muito natural, que é preservada nas comunidades do interior”, ponderou. Contudo, ele entende que o hábito pode parecer atípico para quem não está acostumado. “Meus colegas têm dificuldade de entender. Acham que é coisa de outro mundo.”
No varejo de Monte Alverne, é comum ouvir-se lojistas e clientes negociando em alemão. Saber o idioma germânico é obrigatório na maioria dos estabelecimentos. É o caso da Loja Irlande, situada na Rua Dr. Pedro Eggler, que comercializa roupas, calçados e acessórios. A proprietária, Irlande Freitag Petersen, 61 anos, estima que 95% dos atendimentos são efetuados na língua dos avós. “Para nós, é muito importante preservar a tradição”, justificou.
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A filha Carine Cristina Melz, 37, trabalha na loja há duas décadas. Conviveu somente com o alemão durante a infância. O português veio apenas na escola, aos 6 anos. “Posso até saber a língua portuguesa, mas tenho dificuldade em usar. Prefiro falar em alemão mesmo, é mais bonito de pronunciar”, admitiu.
O alemão também se faz presente no varejo da área urbana de Santa Cruz do Sul, conforme o Sindilojas. A entidade observa que ainda hoje há uma certa preferência pela contratação de funcionários ou atendentes que saibam falar essa língua, de maneira a poderem se comunicar com os clientes do interior.
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