Cultura e Lazer

Kolonie, símbolo de comunicação e de resistência

No fim do século 19, quando Santa Cruz do Sul já havia se emancipado de Rio Pardo e conquistado a autonomia administrativa, a necessidade de comunicação entre as colônias locais e as demais regiões de colonização germânica no Rio Grande do Sul motivou a criação de jornais. Em 25 de março de 1887 foi fundado o primeiro deles, A Cruzada, por José Rodolpho Taborda. Publicado em português, teve vida curta, com somente dez edições, deixando uma lacuna que só seria preenchida quatro anos depois.

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Os impressos com notícias e informações só voltaram às ruas em 1º de janeiro de 1891, quando circulou a primeira edição do Kolonie. Editado em alemão por Arthur Hermsdorf, e inicialmente impresso em Porto Alegre, o jornal tinha periodicidade semanal e era publicado às quintas-feiras. Com interrupções em razão da Primeira Guerra Mundial e do Estado Novo, de Getúlio Vargas, o Kolonie funcionou até o dia 29 de agosto de 1941, quando, mais uma vez em razão da guerra e da proibição da língua alemã, encerrou definitivamente as atividades. Com muitas das edições preservadas até hoje, serve como valiosa fonte de pesquisa para compreender a realidade da época.

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Fachada da Lamberts & Riedl, onde era editado o Kolonie, ainda pode ser vista na Rua 28 de setembro, olhando acima da farmácia

Quando a história passou a ser registrada por escrito

No livro Recortes do passado de Santa Cruz, o professor, historiador e escritor Hardy Elmiro Martin dedicou um subcapítulo para recordar o Kolonie. Conforme a pesquisa, no dia 4 de novembro de 1890, em uma sala do Club União, ocorreu a fundação de uma sociedade com a finalidade de criar um jornal a ser editado em língua alemã. Os fundadores presentes eram Henrique Schütz, Carlos Trein Filho, Henrique Kessler, Adão Jost, Philippe Heuser, Bernardo Krische, Abrahão Tatsch, Guilherme J. Eichenberg e Arthur Hermsdorf.

Esse último, inclusive, foi escolhido para ser o redator responsável pela nova publicação, juntamente com seu sócio, Johannes Stutzer. A empresa recebeu de imediato Rs 1:000$000 (1 conto de réis) para adquirir os tipos necessários para a impressão, encomendados de uma fábrica de Hamburgo, na Alemanha. Enquanto isso, os primeiros exemplares foram impressos em Porto Alegre. Foi só a partir de 28 de março daquele mesmo ano, após a chegada do novo equipamento, que a edição passou a ser feita em Santa Cruz.

Com o passar dos anos, Hermsdorf e Stutzer alimentaram o desejo de se tornarem proprietários do já consolidado jornal, e adquiriram as ações na totalidade em 1º de janeiro de 1894. No fim daquele século, em fevereiro de 1898, os proprietários viajaram a Porto Alegre com o objetivo de comprar uma nova impressora. Voltaram de lá com uma Koenig e Bauer nº 2015.

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Já no século 20, em 1901, os dois sócios decidiram vender o Kolonie aos pastores Friedrich Klasing e Wilhelm Kull. Ainda segundo o levantamento de Martin, naquela mesma oportunidade Adolfo Lamberts assumiu a parte comercial e Guilherme Kuhn ficou responsável pelo setor de impressão.

Passados mais alguns anos, em maio de 1905, José Ernesto Riedl assumiu o cargo de editor. Dois anos depois, ele e Lamberts compraram o Kolonie e fundaram a Lamberts & Riedl, empresa que seria responsável pela edição até o encerramento das atividades, em 1941.

Guerra e censura

A partir de 1911, o Kolonie passou a ser trissemanal, com edições às segundas, quartas e sextas-feiras. Prosseguiria assim até 1917, ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha e entrou oficialmente na Primeira Guerra Mundial. Assim, a última edição em língua alemã da primeira fase do jornal circulou três dias depois, em 29 de outubro de 1917.

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O vazio deixado motivou a fundação da Gazeta de Santa Cruz, ligada ao Partido Republicano de Santa Cruz, cujo primeiro número circulou em 15 de fevereiro de 1918, em português. Mesmo editado em língua portuguesa, haja vista a proibição do alemão, e redigido por Adolfo Lamberts e José Ernesto Riedl, o novo veículo sofreu imediatamente com a censura da polícia local. Em razão disso, durou pouco tempo, sendo fechado em 27 de junho do ano seguinte.

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Findado o conflito mundial, e com ele as restrições à língua alemã no Brasil, Lamberts e Riedl voltaram a editar o Kolonie em setembro de 1919. Mesmo em meio ao nacionalismo do Estado Novo, determinado por Getúlio Vargas, o impresso duraria mais 22 anos. Em 1941, dessa vez em razão da Segunda Guerra e das novas restrições ao alemão no País, o jornal encerraria suas atividades definitivamente em 29 de agosto. “Portanto, durante meio século, o Kolonie foi editado em Santa Cruz, sendo hoje valiosa fonte de pesquisa para todos aqueles que desejarem estudar a história de Santa Cruz do Sul”, escreveu Martin.

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O jornalista Guido Ernani Kuhn, no livro Um homem de fibra – a biografia de Francisco José Frantz –, dedicou algumas páginas ao Kolonie. Recorda que após a entrada do Brasil na guerra houve uma tentativa de retomada em português, sob o nome de Jornal de Santa Cruz. “…mas foi um esforço inútil. A mão de ferro do delegado de polícia François Nehmé tanto pressionou e censurou que não teve jeito”, frisou.

A partir dali, a cidade ficaria sem jornal até 26 de janeiro de 1945, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a Gazeta de Santa Cruz – atual Gazeta do Sul.

O último suspiro de um veículo muito referencial

Em outro capítulo do livro Um homem de fibra, Guido Ernani Kuhn trata sobre o último suspiro do Kolonie em alemão. Consta, inclusive, o último artigo publicado pelo redator Clemente Brandenburger, por meio do qual expõe a mágoa e a revolta com a censura do governo Vargas ao proibir publicações em línguas estrangeiras no Brasil. Com o título “Der Leser und seine Zeitung” (“O leitor e seu jornal”), o jornalista classificou a medida como “única no mundo”. Manifestou ainda o prejuízo que, segundo ele, provocaria ao País e a disposição para continuar.

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Edição de 30 de abril de 1941 foi uma das últimas publicadas

O texto foi traduzido na íntegra. “Este é o último número de nossa folha, em que se aplica a língua alemã. Sabem os nossos leitores que, por ordem do governo federal, não podem ser publicados no Brasil jornais e revistas em línguas estrangeiras, de 31 de agosto em diante.” Na sequência, Brandenburger mostra-se preocupado com a extinção da imprensa teuto-brasileira, vista por ele como a mais antiga e numerosa que se publicou no Brasil. “Embora a imigração germânica não prevalecesse pelo número, prevaleceu, porém, pelo grau de cultura de seus componentes.”

Uma semana após o encerramento, em 5 de setembro de 1941, em plena Semana da Pátria, os assinantes do Kolonie receberam seus exemplares em português, e sob o nome de Jornal de Santa Cruz. “Ao contrário de 1918, desta vez os editores assumiram a continuidade, reagindo com inconformidade à medida do regime Vargas, que baniu a única língua conhecida por milhares de brasileiros”, observa Kuhn.

A atuação do interventor federal no Estado, o general Osvaldo Cordeiro de Farias, e seu chefe de polícia, Aurélio da Silva Py, contudo, tornaram a situação insustentável. “Promoveram perseguição implacável à germanidade como valor étnico e cultural do Rio Grande do Sul.

”Segundo alguns registros, o delegado François Nehmé comandou uma invasão às instalações do Kolonie. “…houve um verdadeiro quebra-quebra, logo depois de um grande comício realizado na frente da Prefeitura, liderado pelo interventor federal no município, Dario de Azevedo Barbosa.” Edgar Riedl, filho de José Ernesto Riedl, relatou a Kuhn toda a perseguição que sofreu de Nehmé. “Às vezes, colocava um policial na porta da tipografia e não permitia que o nosso trissemanário fosse à rua. Faziam o diabo, a gente não era dono nem do próprio nariz.”

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Contou ainda que era chamado e mantido na delegacia a qualquer dia, por várias horas, e servia de intérprete aos alemães detidos por falarem a própria língua. Tudo isso atrasava as edições e motivava reclamações por parte dos assinantes que não recebiam seus exemplares no horário habitual. Ainda conforme o relato de Riedl, o delegado lia e censurava previamente os artigos, deixando o jornal com muitos espaços em branco. “Um transtorno medonho. Os nervos em pandarecos. Não resisti mais. Desisti, e Santa Cruz ficou sem jornal.”

Uma trajetória exitosa

Conforme a professora e pesquisadora Lissi Bender, o sentido da vida em comunidade e da educação fez com que os imigrantes unissem esforços para proporcionar escola aos filhos, sem esperar o governo. O gosto pela leitura e o interesse pelo que acontecia no mundo motivaram a implantação da imprensa em Santa Cruz, com diversos jornais e anuários. Diante disso, segundo Lissi, o Kolonie surgiu e se consolidou, oferecendo conteúdo diverso. Nas páginas havia artigos voltados a agricultura, notícias de outras colônias, novidades de todo o Estado e até mesmo da Alemanha, além da literatura.

“O jornal não era lido somente em Santa Cruz, mas também nas demais colônias alemãs do Estado. O que o transformou em um dos jornais mais lidos no Rio Grande do Sul daquele tempo”, acrescenta. Lissi salienta que a imprensa em língua alemã foi importante veículo para a socialização dos descendentes de alemães, que, por meio dela, puderam se informar e se integrar. “De modo que, com a proibição da circulação de jornais e outros impressos, foi interrompida importante ponte dos descendentes com o mundo externo.”

O processo de nacionalização do ensino, da língua e da cultura promovido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, avalia a professora, teve como grande consequência a perda da tradição de leitura, até então amplamente difundida. Com a proibição da língua alemã também nas escolas, cresceu toda uma geração que teve a alfabetização em idioma alemão interrompida, e não foi alfabetizada o suficiente para ler em português. “O que não lhes permitiu dar continuidade à longa tradição de leitura existente”, afirma.

Ainda segundo ela, é difícil mensurar a amplitude dessa perda. Ainda assim, enfatiza que a nacionalização contribuiu para o estabelecimento de um vazio na tradição de leitura até então amplamente presente nos lares, em círculos de leitura e nas escolas de Santa Cruz. “Promoveu a existência de uma geração que não pôde legar a seus filhos o que ela própria não mais havia experienciado.”

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Bruno da Silveira Bica

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