Na Ladeira de André fica também a casa onde viveu Mikhail Bulgakov, escritor ucraniano que, tanto quanto Dostoiévski, me marcou profundamente durante o período que vivi em Moscou. Minha primeira leitura de Bulgakov foi Coração de cão, um livro inesquecível, em estilo semelhante ao de Oscar Wilde em seu Retrato de Dorian Gray, porém com forte tempero eslavo. Nas igrejas, observo os rituais ortodoxos.
Rituais, por mais que possam parecer sem sentido para alguns, servem para nos lembrar de quem somos, e de onde viemos. São uma forma de reencontro com antepassados e nos perpetuam como parte de algo maior, além de nossa limitada existência e infinitesimal importância. Individuais ou coletivos, e, especialmente, rituais religiosos, dão também o combustível maior de uma vida plena: a esperança. Nos rendermos às tradições, e à história nelas contida, é muitas vezes nossa única opção disponível em um cotidiano de acelerada transição e difícil compreensão. Um mundo que muda constantemente de forma e estrutura, antes que possamos agarrá-lo e compreendê-lo.
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Na Igreja de São Miguel, no centro histórico de Kiev, o dia claro ressalta o azul das paredes externas, que com o anil do céu fazem com que as reluzentes cúpulas douradas pareçam flutuar. Uma celebração está em curso para poucas pessoas. Os cantos polifônicos entoados pelos sacerdotes convidam à meditação e contemplação. A nave é relativamente pequena, mas a riqueza da decoração é impressionante. Como em outras igrejas ortodoxas do leste europeu, impressiona ainda mais a devoção, principalmente das mulheres em seus véus brancos, orando e acendendo velas para cada ícone ali presente.
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Pensei na família, amigos e particularmente em meus pais, neste ritual da natureza humana que envolve dedicação, desapego, sacrifício e amor. Ao mesmo tempo que devam ser sempre que possível retribuídos, perpetuam-se de forma superior quando passados aos filhos e àqueles que amamos. A luta para acumular bens, experiências e satisfação pessoal se torna uma brutal contradição ao nos darmos conta do que realmente interessa. É na doação, desprendimento, empatia na dor e alegria dos que nos rodeiam, que nos realizamos e nos perpetuamos, sublimando a efemeridade humana.
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Há pouco mais de um ano, escrevi aqui no Magazine sobre meu destino seguinte na Ucrânia. Uma parte do país que até poucas décadas era desconhecida e que, pelas razões erradas, entrou definitivamente nos livros de história. Do livro do Apocalipse, 8:10: “E o terceiro anjo tocou a trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas. E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas”.
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O absinto é uma erva amarga. A palavra absinto, em ucraniano, é também o nome de uma fatídica cidade e região ao norte do país: Chernobyl (Tchérnobil).
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