A novela que se desenrola desde 2015, em Candelária, sobre um possível desvio de mais de R$ 1,7 milhão dos cofres públicos por meio de pagamentos superfaturados à Associação Pró Desenvolvimento da Cidadania de Candelária (Adeccan) ganhou mais um capítulo. Agora, os réus do “Caso Adeccan” tiveram os seus bens indisponibilizados pela Justiça. O pedido foi encaminhado pelo promotor Martin Albino Jora, do Ministério Público (MP), e decretado pelo juiz da comarca de Candelária, Celso Mernak Fialho Fagundes, ainda em dezembro do ano passado.
A ação cívil pública movida pela promotoria denuncia como réus a Adeccan, os ex-presidentes da entidade Aristides Feistler e Hardi Richard, o ex-prefeito de Candelária Lauro Mainardi e o atual prefeito, Paulo Roberto Butzge, por atos de improbidade administrativa, já que desprezaram mandamentos constitucionais. A acusação afirma que os reús seriam responsáveis por terceirização irregular; falta de prestação de contas; inexistência de controle contábil; omissão fiscalizadora; e movimentação irregular de cheques da conta bancária vinculada ao convênio, com desvio estimado em R$ 1.788.334,84.
Com o deferimento da liminar, os quatro denunciados tiveram constrição de ativos financeiros e restrição de veículos e imóveis. Na denúncia do MP, Jora ainda pediu ressarcimento integral do dano, perda de valores ilicitamente incorporados ao patrimônio, perda da função pública (para aqueles que ocupam cargo), multa civil correspondente a duas vezes o valor do dano devidamente corrigido e suspensão dos direitos políticos pelo prazo de cinco a oito anos. Os advogados de defesa podem recorrer.
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A denúncia do MP levou em conta uma apuração feita pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), entre 2014 e 2015. A auditoria apontou irregularidades sobre os recursos repassados pela Prefeitura à Adeccan, como pagamento indevido e falta de comprovação do uso de recursos. Além disso, a associação não tinha sede própria e chegou a usar como endereço a localização da Secretaria Municipal de Educação.
O que dizem os réus
Lauro Mainardi
Ex-prefeito – O empresário e ex-prefeito de Candelária, Lauro Mainardi, afirmou que os seus advogados já estão trabalhando para recorrer da decisão. Segundo ele, em seus dois mandatos, entre 2005 e 2012, o TCE verificou as contas da Prefeitura anualmente e nunca sugeriu o encerramento do convênio com a Adeccan. “Tenho certeza de que não tenho nada a ver com esse problema”, enfatizou.Publicidade
Quanto à renovação dos convênios com a associação para a contratação de servidores, Mainardi contou que a Confederação Nacional de Municípios (CNM) orientava os prefeitos a não realizar concursos públicos para seleção de servidores que atuariam em programas do governo federal, nas áreas de Saúde e Assistência Social. A justificativa era de que se tratava de iniciativas temporárias e, se os funcionários fossem concursados e os programas encerrados, o quadro ficaria ocioso. “A solução encontrada era contratar através de Oscips”, explicou.
Mainardi afirmou que, durante seus mandatos, governou Candelária com grandeza, levando o desenvolvimento ao município. “Agora estou sendo acusado injustamente”, lamentou. Conforme o empresário, o patrimônio dele continuou o mesmo de antes de ser prefeito, sem transferências ou aquisições.
Aristides Feistler
Ex-presidente da Adeccan – O ex-presidente da Adeccan, Aristides Feistler, informou que já entrou em contato com os seus advogados, para que eles recorram. Afirmou que não está ligado a nenhum problema, já que a auditoria do TCE apontou irregularidades na prestação de contas da Adeccan a partir de 2013. “Eu fui presidente de 2004 a 2008”, lembrou.Publicidade
Feistler já constatou a indisponibilidade de bens imóveis, mas não foi notificado oficialmente. Ele disse que, no entanto, que a aquisição dos terrenos data de pelo menos 20 anos atrás. O argumento deve ser utilizado pelos advogados no recurso a ser apresentado à Justiça.
Paulo Roberto Butzge
Prefeito – A reportagem da Gazeta do Sul tentou entrar em contato, via telefone, com o prefeito de Candelária, Paulo Roberto Butzge, durante vários dias em horário de expediente, na Prefeitura, mas foi informada de que ele ele não estaria em seu gabinete. Também foram feitas chamadas para o telefone celular de Butzge, que não tiveram resposta.Hardi Richard
Ex-presidente da Adeccan – A Gazeta do Sul tentou entrar em contato, via telefone, com o ex-presidente da Adeccan Hardi Richard, mas as chamadas não foram atendidas.Publicidade
“Mecanismo de favorecimento a privilegiados”
O convênio entre a Prefeitura e a Adeccan se manteve entre 2004 e 2015 e tinha como principal objetivo a contratação de servidores para as secretarias de Saúde e Assistência Social. Uma das irregularidades foi a renovação contínua da parceria para suprir vagas que poderiam ser ocupadas por funcionários concursados, caso fosse realizado processo seletivo.
Para contratação de funcionários, a Adeccan usava como critério a indicação. Com base nisso, o promotor Martin Albino Jora sustenta na ação civil pública que, durante os governos de Lauro Mainardi e Paulo Butzge, “formou-se um verdadeiro mecanismo de favorecimento a privilegiados e de empreguismo por parte do poder público municipal via contratações da Adeccan”.
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Entenda as irregularidades
- Terceirização irregular – A Adeccan é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). No texto da ação civil, o promotor explica que a organização foi usada somente como intermediária de mão de obra, o que resultou em contratação fraudulenta de servidores, já que a seleção era mediante indicação.
- Falta de prestação de contas – Haveria fragilidade do controle financeiro. Por exemplo: se os trabalhadores vinculados à Adeccan fossem demitidos em julho de 2014, o valor das rescisões chegaria a R$ 942.956,98. No entanto, naquele mês, a associação tinha R$ 40.731,76 de saldo na conta.
- Inexistência de controle contábil – Há registros de pagamentos duplicados da Prefeitura para a Adeccan. Isto é, havia cobrança do salário integral dos servidores e também do imposto do INSS. No entanto, o desconto desse imposto é feito diretamente sobre o salário do próprio funcionário. Além disso, cursos e diárias de viagens eram registrados apenas como “outros gastos”, sem comprovação.
- Omissão fiscalizadora – O promotor avaliou que o poder público não fiscalizou a movimentação financeira e não exerceu controle rigoroso sobre os gastos da Adeccan, desconhecendo a movimentação da conta bancária, o pagamento de pessoal, entre outros encargos.
- Sonegação – Haveria superfaturamento nos repasses referentes ao convênio por meio de listas de funcionários. Os nomes de alguns servidores apareciam na listagem entregue à Prefeitura, mas não constavam no Sistema Empresa de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (Sefip), o que pode caracterizar sonegação e apropriação indébita.
Ex-funcionários ainda buscam direitos rescisórios
Quando o convênio com a Associação Pró-Desenvolvimento da Cidadania de Candelária (Adeccan) foi encerrado em 2015, ainda havia 81 funcionários vinculados à entidade trabalhando na Prefeitura. Hoje tramitam 69 reclamatórias trabalhistas ajuizadas contra a Adeccan e, de forma subsidiária, contra o governo municipal, gerando um passivo estimado em R$ 3.086.400,00. Os ex-servidores da Adeccan reclamam direitos que não foram pagos, como 13o salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e férias.
A Prefeitura foi condenada em todas as reclamatórias em primeira instância e também nos recursos apresentados ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT). A Procuradoria Geral do Município (PGM) interpôs, então, recursos no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília. Por lá, os processos foram distribuídos para turmas diferentes.
Em decisão recente, a 5ª e a 6ª turmas acolheram os argumentos apresentados pela PGM e afastaram a condenação da Prefeitura. No entanto, outras turmas divergiram da decisão. As reclamatórias podem chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF).