A Justiça de Santa Catarina negou que uma criança, de 11 anos, vítima de estupro e grávida de 29 semanas, realizasse um aborto autorizado. Em despacho expedido em 1º de junho, a magistrada Joana Ribeiro Zimmer, da 1ª Vara Cível de Tijucas, a 50 quilômetros de Florianópolis, decidiu pela permanência da criança em um abrigo com o objetivo de mantê-la afastada do possível autor da agressão sexual e também para impedir que a mãe da menina, responsável legal pela filha, levasse a cabo a decisão de interromper a gravidez. “Se no início da medida protetiva o motivo do acolhimento institucional era a presença de suspeitos homens na casa, o fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”, escreveu Joana Ribeiro Zimmer.
Por envolver menores de idade, o caso segue em segredo de Justiça, mas o jornal O Estado de S. Paulo conseguiu acesso à decisão. As identidades da vítima e da mãe foram preservadas.
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No despacho, Joana Ribeiro Zimmer defendeu a continuidade da gestação por parte da criança. Ela citou que o aborto deve ser realizado até 22 semanas de gravidez ou o feto atingir 500 gramas.
A juíza se manifestou ainda favorável a manter a gravidez independentemente de a gestação provocar riscos à menina. “E ainda que feita a retirada do bebê no caso de risco concreto para a gestante, por qual motivo seria descartada a vida do bebê, que tem mais de 22 semanas e não é mais um conjunto de células, um bebê humano completo?”, questionou.
Os detalhes
O caso ganhou repercussão nacional nesta segunda-feira, 20, com a divulgação da gravação de uma audiência de 9 de maio, em que mostra a defesa da magistrada à ideia de a vítima do estupro não interromper a gravidez – desejo manifestado no vídeo pela criança e pela sua mãe, responsável legal pela filha.
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Na gravação, obtida pelo site The Intercept Brasil e divulgada em reportagem produzida em conjunto com o portal Catarinas, Joana sugeriu à garota a continuidade da gravidez por mais algumas semanas para que o parto fosse feito e o bebê fosse entregue para outra família. “Quanto tempo que você aceitaria ficar com o bebê na tua barriga para a gente acabar de formar ele, dar os medicamentos para o pulmãozinho dele ficar maduro para a gente poder fazer a retirada para outra pessoa cuidar?”, perguntou a juíza.
A menina responde: “Eu não sei.” A juíza, porém, insiste: “Se a tua saúde suportasse [a gestação], tu suportaria ficar mais um pouquinho com o bebê? Mais duas ou três semanas?” A garota então consente. “Sim”, responde.
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Já em um diálogo direto com a mãe, a juíza afirma que existem cerca de 30 mil casais que “querem o bebê”. “Essa tristeza para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, disse a magistrada. “É uma felicidade porque eles não estão passando pelo o que eu estou passando”, respondeu a mãe da criança.
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Já na decisão, a magistrada se apoiou nas definições de aborto estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Lembro que vigora no Brasil o Marco Legal da Primeira Infância, que deixa clara a proteção do bebê desde a gestação, daí o fortalecimento legal da interpretação da autorização do Código Penal pela literalidade da palavra ‘aborto’ lá contida, como conceito que, segundo a entidade, é considerado apenas até 22 semanas ou 500g do bebê”.
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Contudo, a OMS não menciona os limites de duração da gestação nas suas novas diretrizes sobre o aborto divulgadas em março. A organização, no entanto, enfatiza que “a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional”, e afirma ainda que negar um aborto por causa do tempo da gestação “pode resultar na continuação indesejada da gravidez”, algo que seria “incompatível com requisito no direito internacional dos direitos humanos”.
O jornal O Estado de S. Paulo não conseguiu contato com a magistrada. Por meio de nota, o Tribunal de Justiça catarinense afirmou que o processo tramita em segredo de justiça.
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A corte, contudo, afirmou que sua corregedoria vai investigar. “A Corregedoria-Geral da Justiça, órgão deste Tribunal, já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos.” “Estamos lutando para essa interrupção da gestação. Primeiro, porque a criança é assistida por lei. Ela está no enquadramento do aborto legal, por ser vítima de violência e por correr riscos de morte”, afirmou advogada Daniela Félix, que representa a família da vítima. “A gente tem, no Brasil, três casos de aborto que independe do tempo de gestação. Nesse caso, estamos amparados por dois (risco à saúde da gestante e estupro) – o terceiro caso seria o de anencefalia”, explicou a advogada.
Conforme o artigo 128 do Código Penal, não se pode punir o aborto quando: não há outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez resulta de estupro, ou se o aborto é precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ampliou as condições de interrupção da gravidez ao definir pela não criminalização da decisão de a grávida abortar fetos anencéfalos. “O procedimento de interrupção da gestação é completamente legal”, afirma Daniela. Se a mãe, que é a representante legal, está se manifestando pela interrupção da gestação em função do estupro, “o Estado tem de cumprir e dar autorização para essa interrupção da melhor forma possível para a criança de 11 anos”.
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‘Não há riscos“
A conversa com Joana Ribeiro Zimmer aconteceu após a vítima e a mãe recorrerem ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU), de Florianópolis, no começo de maio, para buscar a interrupção da gravidez.
Na época, em 5 de maio, a gestação estava com 22 semanas e três dias, o que impediu os médicos de realizarem o procedimento, uma vez que a norma no hospital é que o aborto seja feito com até 20 semanas de gestação. Mesmo assim, o HU realizou exames na criança e pediu autorização judicial para interromper a gravidez. Dias depois, de acordo com a reportagem do The Intercept e do portal Catarinas, o Ministério Público de Santa Catarina entrou com ação cautelar pedindo pelo acolhimento institucional da criança, e que deveria retornar à família somente depois de não estar mais em situação de perigo dentro de casa.
Nos dias 17 e 23 de maio, os médicos do Hospital Universitário foram ouvidos pelo Ministério Público sobre o caso em audiências realizadas no Fórum de Tijucas.
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O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso também à descrição dos depoimentos dos profissionais, que alegaram que a criança estava, até o momento, apresentando sinais de uma gravidez sem riscos. “Das audiências em referência, a partir dos relatos médicos, o que se pode extrair, de maneira enfática, é que, a par do risco geral decorrente de uma gravidez em tenra idade, a gestação está se desenvolvendo de forma normal, dentro de um limiar de absoluta segurança”, escreveu em 25 de maio a promotora Mirela Dutra Alberton, da 2ª Promotoria de Comarcas de Tijucas, no pedido judicial de interrupção da gestante, anexado nos autos do processos, documento que a reportagem também teve acesso.
Ela ressaltou, porém, que o único consenso apresentado pelos médicos é que a criança, então no final do mês passado, com 23 semanas de gestação, não se encontrava “em situação de risco imediato”. Mas a promotora fez uma ressalva: “Com o avançar da gravidez, a tendência natural é que o risco geral se acentue e possa evoluir para riscos específicos, conforme exposto pelos profissionais”.
De acordo com os médicos, os riscos à vida da vítima estão relacionados com a duração da gestação, e também com os procedimentos de parto e pós-parto a que uma criança de 11 anos será submetida. O descolamento de placenta e sangramento provocados pelo trabalho de parto prematuro e atonia uterina (falta de contrações do útero) após o nascimento do bebê foram alguns dos problemas citados pelos médicos.
A reportagem não conseguiu localizar a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton até a conclusão desta reportagem.
O HU não respondeu aos questionamentos da reportagem até o fechamento do texto.
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