Regional

José Pedro Pauli: o massagista que se fixou na memória de gerações

Em um tempo no qual recursos na área da saúde nem de perto se assemelhavam aos modernos equipamentos hoje disponíveis, pessoas que tinham o dom ou a habilidade de amenizar dores do corpo através de massagens atraíam clientelas cativas nas localidades. Mas poucos profissionais alcançaram o grau de projeção de um vera-cruzense. A partir dos anos 40 e 50, e ao longo de mais de três décadas, multidões acorriam diariamente à Linha Número Um, nas cercanias da Vila Theresa, ou, depois da emancipação, de Vera Cruz, para recorrer aos préstimos de José Pedro Pauli.

Sua aptidão e sua habilidade com as mãos para amenizar ou eliminar dores projetaram-no muito além da região. Neste sábado completam-se 35 anos desde seu falecimento, aos 69 anos, em 25 de fevereiro de 1988. Mas a memória de sua atuação permanece intensa junto a familiares, a vizinhos na localidade em que se estabelecera e junto a antigos clientes, alguns dos quais foram fidelizados ao longo de toda uma vida (e entre os quais esteve inclusive o autor desta reportagem, quando tinha apenas poucos dias).

A Gazeta do Sul visitou nesta semana a casa na qual ele atendeu, na Linha Número Um, na qual hoje reside a sua filha mais nova, Márcia. Aliás, a localidade, já a pouco mais de um quilômetro da área central da cidade, agora compreende o Bairro Maria Rosália Pauli, em homenagem à falecida esposa de seu José Pedro. Na moradia, ampla e aconchegante, e que foi, ao longo de quase cinco décadas, o destino de multidões, o quarto em que Pauli atendeu segue absolutamente igual.

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A história

Vera Cruz ainda nem era emancipada, e sequer tinha esse nome, quando os Pauli chegaram para morar na Linha Número Um, então uma localidade situada a dois quilômetros e meio da área mais central de Vila Theresa. A independência municipal só viria a se concretizar em 1959. A família viera de Trombudo, hoje Vale do Sol, para se dedicar à agricultura, em especial ao cultivo de tabaco, em área ali adquirida. E seria um dos descendentes que, por sua habilidade como massagista, nas décadas seguintes viria a projetar a Linha Número Um, e Vera Cruz, para muito além dos limites da região, tornando-a conhecida em todo o Estado.

José Pedro Pauli nascera em Trombudo, em 7 de março de 1919, e chegara com os pais e os irmãos, ainda menino, à nova moradia. Ali, cresceu auxiliando os familiares em todas as tarefas e, enquanto seguia os estudos primários, ia prestando mais e mais atenção ao mundo à sua volta. Os pais adquiriram mais áreas de terra (chegaram a reunir 55 hectares), e alguns tios foram tentar a sorte em novas colônias que surgiam no Noroeste gaúcho e em Santa Catarina. Um instrutor de empresa fumageira, conhecido como “seu Franke”, de passagem pela localidade, por vezes se hospedava com os Pauli. E ali atendia pessoas que o procuravam, porque atuava como massagista. O pequeno José Pedro assistia àquelas sessões, um tanto curioso.

Um raro registro de Pauli feito durante um atendimento

Quando cresceu, ele próprio foi revelando mais e mais aptidão ou interesse para fazer massagens. Diante da evidência de um forte e claro potencial para a área da saúde, alguns de seus tios que haviam ingressado em seminário para a formação religiosa o convenceram a buscar mais qualificação. E assim o encaminharam, bastante jovem, para se aperfeiçoar como enfermeiro na Santa Casa de Porto Alegre. De lá, seguiu para a Santa Casa de Pelotas, onde aprimorou conhecimentos em saúde e anatomia.

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Tão logo retornou para a Linha Número Um, começou a atender os vizinhos e pessoas de toda a região. Casou-se então com Maria Rosália Schmidt Pauli, ela natural de Linha Dona Josefa, localidade próxima. O casal teve oito filhos, seis meninos e duas meninas, e estes, à medida que cresciam, iam testemunhando, semana a semana, mês a mês, a clientela do pai aumentar e sua fama ultrapassar, e muito, os limites do Vale do Rio Pardo.

José Pedro e Maria Rosália tiveram, pela ordem, os filhos Ivo, hoje com 79 anos, e que se radicou em Santiago, na fronteira; Darci, de 77 anos, que reside em Vera Cruz; Ilga, falecida, e que por alguns anos, após a morte do pai, deu continuidade ao atendimento como massagista na mesma casa paterna; Elpidia, já falecida, e que fora esposa do ex-prefeito de Vera Cruz, Guido Hoff; Léo, de 72 anos, morador de Vera Cruz; Inácio, de 69 anos, também residente em Vera Cruz; Sérgio, de 63 anos, que herdou o dom do pai, e posteriormente ingressou na gestão empresarial junto à Viação União Santa Cruz, dividindo-se hoje entre Santa Cruz e sua terra natal; e Márcia, com 58 anos, a mais jovem entre os irmãos e a que acabou por ficar morando na casa da família em Linha Número Um.

É Márcia quem agora zela, na companhia de uma prima, Oliva, de 67 anos, e que há meio século reside com a família, pela estrutura de atendimento que seu pai organizou no local ao longo de décadas. O ambiente de entorno da casa, com o arvoredo e as benfeitorias, bem como os espaços em que os clientes eram recepcionados, os vestiários, a sala de espera e o quarto de massagista, com seus móveis, tudo está preservado.

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Um ambiente que desperta recordações

A família demonstra ter plena e total consciência da importância que o patriarca José Pedro Pauli teve para a área da saúde não só de Vera Cruz ou da região, mas de todo o Estado, pelo qual a sua fama se espalhou e se consolidou. Tanto é assim que a casa em que o massagista e sua esposa Maria Rosália moraram, e na qual criaram os oito filhos, segue sendo bem cuidada, na Linha Número Um, e, mais do que isso, na medida do possível inclusive recuperada.

Na quinta-feira, a Gazeta do Sul visitou a propriedade. Ali, foi recepcionada por Sérgio e Márcia, os dois filhos mais jovens do casal, e por Angelo Hoff, que é neto, sendo filho de Elpidia com Guido Hoff; e ainda por Oliva, sobrinha de José Pedro, que ali foi acolhida aos 16 anos, há meio século.

Já na via de acesso à propriedade, a partir da estrada geral, vicinal, da Linha Número Um, descortina-se o pátio arborizado, com um enorme ingazeiro dominando a paisagem. Antes, recordam Sérgio, Márcia e Angelo, eram três cinamomos, que proviam de sombra a todos os que, diariamente, acorriam ao local em carros, Kombis, ônibus ou outros meios de locomoção, para buscarem atendimento de massagista.

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Uma foto de José Pedro Pauli mantida na casa em que residiu
A foto de sua esposa, Maria Rosália, que hoje dá nome ao bairro

Seguem no quintal os mesmos bancos sobre os quais se acomodavam as pessoas que aguardavam por sua vez, ou as que as acompanhavam. Próximo, plantas ornamentais e um sortido e amplo pomar, bem como garagens e galpões. Também estão lá, visíveis na parede, as placas com indicações para os vestiários, placas que, aliás, assim como as fichas de ordem de atendimento, foram confeccionadas por ninguém menos do que Eliseu Kopp, depois fundador e administrador da empresa de tecnologia Kopp. E, claro, a porta de entrada está preservada, bem como a sala de espera, com seus bancos e os quadros com paisagens na parede, que gerações de pacientes devem ter apreciado ao longo de anos, enquanto aguardavam para serem convidados para ingressar na sala de atendimento, ao lado.

E, então, finalmente os clientes, homens e mulheres, desde crianças da mais tenra idade (por vezes com dias de vida) até idosos, eram gentilmente convidados pelo massagista Pauli a se dirigirem a sua sala de atendimento. A filha Márcia, farmacêutica aposentada, e os demais familiares esmeram-se por manter intactos praticamente todos os utensílios, bem como os móveis e a ornamentação da parede. Os batentes da veneziana na janela permaneciam quase sempre fechados, e só eram abertos por José Pedro quando a sua esposa saía, ou chegava de retorno de seus afazeres, para assim se reportar a ela. “O pai e a mãe eram muito, muito ligados; se gostavam muito, isso sempre esteve evidente para nós. E tão logo ela saía ou retornava, ele costumava falar com ela”, frisa Márcia.

Na sala, que possui uma segunda porta, esta de acesso ao ambiente íntimo (sala de estar, cozinha, quartos e toaletes), permanecem as macas sobre as quais os pacientes se deitavam. Há ainda outra mesa de apoio, uma cadeirinha, escadinha para facilitar o acesso às macas, a pia para a higiene das mãos, e um móvel em madeira no qual há uma pequena gaveta. Era nesta que as pessoas poderiam, após o atendimento, deixar algum valor em retribuição pela massagem. “O pai nunca cobrou ou fixou qualquer valor, mas deixava livre para quem quisesse deixar alguma contribuição. Muitos, os com poucas posses, ou mais pobres, claro, nem deixavam, e isso em nada mudava a forma profissional com que os auxiliava sempre”, recorda o filho Sérgio.

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Por alguns anos, Ilga, filha de José Pedro, e que se aperfeiçoara como massagista, atendeu clientes aproveitando a mesma estrutura que era do pai. Após o falecimento dela, em 2019, Márcia determinou-se a preservar o mais intacto possível esse ambiente, que ativa tantas memórias familiares e desperta recordações junto a gerações. Trinta e cinco anos após a morte do massagista Pauli, nem a família, nem a localidade, nem a sociedade o esquecem.

Os filhos Sérgio e Márcia e o neto Angelo no pátio da casa dos Pauli, em Linha Um
A porta pela qual a filha Elpidia alcançava a ficha para os que procuravam os serviços
Os vestiários utilizados pelas pessoas que aguardavam na fila para serem atendidas
Sala em que o massagista Pauli atendeu clientes que vinham da região e de muito longe
A sala de espera, ainda com os bancos que foram ocupados por milhares de pessoas

Um dom que se transmitiu de Pauli a filhos e a netos

A morte do massagista José Pedro Pauli, há 35 anos, não significou que seu legado tivesse deixado de ter continuidade na família. Muito pelo contrário. Penúltimo dos oito filhos dele e de dona Maria Rosália, Sérgio cresceu testemunhando as multidões que diariamente acorriam à residência da família para ser atendidas por seu pai. Talvez de forma natural, e até intuitiva, acabou por se interessar por aquela habilidade incomum, e, com a curiosidade infantil, sentiu-se direcionado, vocacionado, para dar continuidade àquela prática.

Após o falecimento de José Pedro, também sua filha Ilga, então já divorciada, e que fizera aperfeiçoamento como massagista, passou a atender a antiga clientela do pai utilizando a mesma estrutura disponível na residência, na companhia da irmã Márcia. Esta recorda que Ilga, falecida em 2019, também foi amplamente bem-sucedida como massagista em toda a região, e, de certo modo, herdou o dom de seu pai.

O neto Angelo (e) e o filho Sérgio, aqui na sala de atendimento, herdaram a habilidade de massagista do avô e do pai José Pedro Pauli | Foto: Alencar da Rosa

Mas foi, de fato, um dos filhos o pioneiro a buscar formação superior na área. Nascido em 1959, Sérgio cresceu e chegou à adolescência em um tempo no qual a possibilidade de seguir nos estudos, inclusive nas áreas de Medicina ou Fisioterapia, já era bem mais concreta, e com mais condições de acesso a cidades como Porto Alegre ou Santa Maria. Com isso, concluído o nível médio, ingressou na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), cursando Fisioterapia. Seguiria os passos do pai.

O fato é que Sérgio, recém-formado, testemunharia o quanto seria complicado iniciar uma carreira à sombra da imensa fama do pai. Por mais que este tivesse predisposição para acolhê-lo junto na clínica, o mesmo não ocorria exatamente com os clientes. Já afeitos ao longo de anos ao jeito de José Pedro, com absoluta confiança, era por ele que as pessoas queriam ser atendidas.

Mesmo quando o pai se ausentava para momentos de descanso, e Sérgio atendia alguém, não raro dias depois via a mesma pessoa retornando, porque queria se consultar com José Pedro. “Diziam que até tinham melhorado, mas que optavam por vir mais uma vez para ele verificar se estava tudo certo”, recorda Sérgio, com sorriso.

Quando se deu conta de que seria difícil empreender carreira diante da preferência da tradicional clientela por ser atendida pelo pai, Sérgio retornou a Santa Maria, onde estabeleceu clínica, que se tornou igualmente referencial naquela cidade. Por lá permaneceu até 1990, quando finalmente se fixou em Santa Cruz, também com clínica muito prestigiada. Ainda mais a partir de sua especialização, entre 1997 e 2000, em Quiropraxia, na Feevale, em Novo Hamburgo, tornando-se pioneiro nessa especialidade, focada na habilidade terapêutica com as mãos.

A transferência para Santa Cruz ainda atendeu a convite do sogro, Laurêncio Schuch, que vislumbrava seu ingresso na diretoria da Viação União Santa Cruz, que ensaiava forte expansão. Assim, seguiu atuando na área da saúde e, em paralelo, acompanhando o desenvolvimento da empresa de transportes. Com o falecimento de seu Laurêncio, em 2012, Sérgio assumiu a presidência. Com isso, acabou por interromper, em dado momento em definitivo, a sua atuação na área da saúde.

O sobrenome que se tornou referência

E uma terceira geração da família Pauli se preparava para levar adiante o legado. Enquanto o tio Sérgio cursara a UFSM, Angelo Hoff, filho de Elpidia e de Guido Hoff, faria sua formação na região metropolitana. No convívio e na relação de afeto com o avô, Angelo crescera vendo a mãe distribuir as fichas de atendimento na clínica em Linha Número Um. “Minha ligação com o vô era muito especial. Para se ter ideia, sou o único gremista na família, toda de colorados. Tudo porque o vô era gremista, e isso me marcou muito”, frisa. “A morte dele, em 1988, na véspera de quando eu completaria 15 anos, foi uma dor imensa, uma perda muito forte para mim.”

Nascido em 27 de fevereiro de 1973 (portanto, em vias de completar 50 anos na segunda-feira), Angelo, que morava com os pais na cidade, com frequência passava temporadas na casa dos avós, na Linha Número Um, ao lado do irmão mais velho, Júnior, e de primos. Muitas vezes pernoitava no local, e pela manhã era surpreendido por ver o pátio tomado de carros, Kombis, ônibus e outros veículos. Eram pessoas que, sozinhas ou em excursões, vinham dos mais diversos recantos da região, do Estado, ou até mesmo de fora dele.

Angelo cresceu também na companhia do tio Sérgio, presenciando o casamento dele com Liane Schuch, filha do proprietário da Viação União Santa Cruz, e que, formada em Enfermagem, se tornaria doutora em Saúde Pública e mestra de gerações de estudantes das áreas de saúde na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Angelo acompanhou ainda a caminhada de formação de Sérgio em Fisioterapia na UFSM.
Quando chegou a hora de definir sua área de estudos, não teve dúvida: ingressou em Fisioterapia na Ulbra, em Canoas, em 1992, quando Sérgio já havia se estabelecido em Santa Cruz. Lembra de uma vivência dos seus primeiros dias de aula: um dos professores, uma autoridade, chegara para a primeira aula de traumatologia. “Na hora da chamada, perguntou a cada um de onde era, e eu disse que vinha de uma cidade bem pequena, chamada Vera Cruz”, salienta.

“Para minha total surpresa, ele reagiu dizendo ‘pois conheço!’” E detalhou: quando menino, ele costumava ir com o pai, que tinha uma Kombi e transportava pessoas até a clínica do massagista Pauli, na Linha Número Um, e ali aproveitava para vender sanduíches que sua mãe preparava, diante do grande público que sempre havia no pátio. “Ou seja, era mais alguém, um mestre em traumatologia, que já tinha conhecimento, tão longe da região, da fama do meu avô.”

Ao longo da caminhada acadêmica, Angelo inclusive estagiou na clínica do tio Sérgio, em Santa Cruz. Tão logo concluiu o curso na Ulbra, e por influência de Liane, candidatou-se e foi aprovado na primeira turma do mestrado em Desenvolvimento Regional da Unisc, em 1997, sendo aluno pioneiro de sua área.

No que foi implantado o curso de Fisioterapia, no segundo semestre de 1998, imediatamente foi incorporado como professor. Permaneceu vinculado à instituição por 24 anos, até se desligar ao final de 2022. Respondia, entre outras, pela disciplina de massoterapia, manipulação das mãos em benefício da saúde, junto aos alunos que se formaram ao longo das últimas duas décadas. Em paralelo, mantinha clínica de fisioterapia em Vera Cruz, da qual, agora, se afasta para uma nova empreitada pessoal.

E Sérgio vê um filho seguir na mesma área

A vocação de Sérgio Pauli e de sua esposa Liane pela área da saúde foi transmitida ao filho mais velho, Guilherme, 34 anos, formado em Medicina pela Unisc e que hoje atende com clínica de traumatologia em Santa Cruz. O mais novo, Gustavo, 31, é engenheiro, formado em 2012.

Se Guilherme leva adiante o dom de família na área dos cuidados em saúde, e o legado do avô José Pedro, Gustavo por sua vez assegura a continuidade na administração da Viação União Santa Cruz. Com oito anos na empresa, e com MBAs em gestão empresarial, acaba de ser incorporado como vice-presidente, ao lado de um CEO.

Tendo tomado a decisão de afastar-se da direção, Sérgio optou por delegar a gestão, de forma profissional. Ele vislumbra preparar o filho para que em breve assuma o negócio, em franca expansão, inclusive com investimentos em novos nichos, como os de construção civil e de ramo imobiliário.
Atualmente, Sérgio e família voltaram a se fixar em Vera Cruz, e assim curtem de perto as memórias e as histórias dos Pauli associadas ao ambiente no qual o pai José Pedro atendeu clientes ao longo de décadas.

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