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José Alberto Wenzel: “Pedra encantada”

Eva chega antes dos demais convocados à rocha. Impossível não lembrar que fora ali que Cristian, o médico naturalista, se deitara por inteiro. Se na fonte lavara seus pés, na pedra teria se imolado por ela, tomado por irresistível impulso amoroso. Um frêmito invade o corpo emagrecido da mulher, que se dedicara integralmente ao marido Antônio, o que não a impede de lembrar da avassaladora inclinação pelo médico que tentara curar seu amado.

Repetindo o gesto do naturalista, Eva debruça-se sobre a pedra. Ajusta seu corpo ao bloco de rocha. Usufrui do momento em saudosa memória. Memória não consumada, mas mutuamente pretendida. Ela o sabe, ele também soubera. Ciente do que poderia ter acontecido, Eva percebe a chegada dos convidados através da brisa, que anuncia os que se aproximam. São troncos decepados, raízes expostas, ramagens desfolhadas, águas desviadas e terras devassadas. Não importam os formatos dos corpos. Aos poucos, o contorno da pedra se amplia em cada nova presença.

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Eva ergue-se da rocha. Todos sabem por que estão ali. Ela abraça o robusto tronco que acaba de chegar. De seu fuste verte a seiva sangrada pela motosserra inclemente que o derribara de sua existência centenária. O tronco já vira muita coisa. Despossuído de sua vitalidade ancestral, não esqueceria os nativos expulsos pelos estranhos humanos, como não deixariam de lembrar os pássaros dos ninhos desfeitos, as abelhas sufocadas pela fumaça mortal, as incursões de rapina aos xaxins e palmeiras.

Todavia, não perdera a vitalidade. Haviam lhe tirado o viço, mas a essência permanecera. Seguiria como tronco, desfeito em raízes arrancadas e folhagem amassada. Mas estava ali. Testemunho vivo da maldade predatória, apresenta-se como a vítima mais recente da sanha dos que trocam vidas por moedas. O tronco foi rápido e incisivo: “Hoje, precisamos agir. Vamos!”.

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Eva puxa a frente. Orienta aos demais através da água vertida da fonte logo acima. Fonte que movera o médico naturalista. Fonte que nutrira milhares de pessoas que, como ela, buscaram a cura de seus amados. Afasta, ainda que momentaneamente, suas reflexões. Segue como seus seguidores. Deixam o Cinturão Verde. Ingressam nas ruas da cidade. Cidade de luzes que acentuam ainda mais a escuridão. Todos intuem o destino. Chegados, cercam o casarão.

Na garagem, a motosserra jaz ao lado da camionete. Em seus dentes, amostras de serragem e resina denunciam o atentado. Os recém-vindos poderiam intervir violentamente? Não estariam fazendo o mesmo que o agressor insensível fizera há poucas horas?

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O propósito é outro. Por ora, importa a identificação do invasor, até porque uma criança dormita inocente sob o mesmo teto. Uma criança da natureza como troncos, raízes, ramagens, águas, terras, ares e demais criaturas. Uma criança que precisa ser preservada, como a diversidade do Cinturão Verde, casa maior de muitas moradias.

Sob os lençóis, o agressor se mexe, temeroso. Suspeita de si mesmo. Contorce-se. Preferiria acordar, mas não consegue. Entra em desespero. Parece cair de muito alto. O pesadelo o transporta para a mata. De súbito, é da árvore que cortara à tarde que tomba. Ainda não acorda de todo. O tronco irá cair sobre ele? Como não consegue sair do torpor noturno? Teme por algo sem nome. Impotente, crispa as mãos.

Rasteja. A umidade do sangue, feito seiva da árvore, o faz escorregar. A seiva o vai cobrindo. Submerge. Quase se afoga. Quer despertar a qualquer custo. Tudo seria melhor do que não acordar. Em vão. A noite o suga para a vertigem abissal de sua consciência. Seus argumentos se esvaem.

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Enquanto isso, Eva e os seus se aprestam ao retorno. Do agressor viram o bastante, como sabem que a este outros se somam. Também sabem que muitos mais são os preservacionistas. Atravessam ruas e praças. Alcançam um antigo e desconhecido cemitério. Confabulam com os aparentemente mortos. Solidários com o tronco serrado, partilham dores e esperanças.

Mas há muito a realizar, ainda nesta noite. Todos se deslocam. Seguem, à imagem de fantasmas noturnos. Precisam chegar, ainda sob a lua, aos porões da antiga casa de saúde. Porões de pedras angulares, originárias da mesma energia eólica da pedra encantada. Pedras que guardam um tesouro misterioso. Tão misterioso quanto os olhos de Eva, que refletem o que os seus agressores prefeririam não ver.

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Carina Weber

Carina Hörbe Weber, de 37 anos, é natural de Cachoeira do Sul. É formada em Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e mestre em Desenvolvimento Regional pela mesma instituição. Iniciou carreira profissional em Cachoeira do Sul com experiência em assessoria de comunicação em um clube da cidade e na produção e apresentação de programas em emissora de rádio local, durante a graduação. Após formada, se dedicou à Academia por dois anos em curso de Mestrado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Teve a oportunidade de exercitar a docência em estágio proporcionado pelo curso. Após a conclusão do Mestrado retornou ao mercado de trabalho. Por dez anos atuou como assessora de comunicação em uma organização sindical. No ofício desempenhou várias funções, dentre elas: produção de textos, apresentação e produção de programa de rádio, produção de textos e alimentação de conteúdo de site institucional, protocolos e comunicação interna. Há dois anos trabalha como repórter multimídia na Gazeta Grupo de Comunicações, tendo a oportunidade de produzir e apresentar programa em vídeo diário.

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