EVA move-se silenciosa. Revive trajetórias. Parece conhecer cada recanto do Cinturão Verde, que contorna, em meia-lua, a cidade que o invade. Desvia de um tronco, agarra-se a um cipó, firma o pé esquerdo no chão úmido. E observa. Atenta, escuta os sons da mata. Saúda suas criaturas. Ao escorregar numa pedra limosa, lembra do esposo, falecido há alguns anos. Dele recorda as dores, mais do que de seu nome.
Suas vidas haviam se transformado em contínua vigilância. Ele, Antônio, podia acordar a qualquer momento da noite e sair pela casa, batendo com a cabeça contra paredes e portas, procurando amenizar a misteriosa dor que o acometia. Dor de poucas tréguas e muita insistência. Sem sucesso, haviam procurado atendimento clínico. Promessas e curanderias igualmente se mostraram sem efeito. Sem outra saída, Eva, auxiliada por um vizinho, amigo, conduzira seu esposo à casa de saúde, distante cerca de 50 quilômetros de sua morada na zona rural.
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Para custear a estadia hospitalar, Eva se oferecera para realizar serviços gerais na própria instituição sanatorial. Não demorou para que a direção da casa descobrisse seu talento para pintura, bordados e artesanato, o que se mostraria muito útil no entretenimento e na recuperação dos internados no Sanatório. Ela se tornaria a artista da casa. Muitos dos pacientes se fizeram seus aprendizes.
As lembranças dificultam o andar de Eva. Por um instante, pensa em desistir da caminhada. Por que voltar à pedra que mudara sua vida? Decide prosseguir. Antes analisa a subida, cortada pelo córrego. Ela conhece bem a água que brota logo acima. Fora ali, junto à fonte, que o médico que atendera Antônio lavara seus pés. Eva surpreendera-se com o gesto do médico Cristian. Sim, dele lembrava bem o nome. De início, Cristian pedira que ela se sentasse num tronco coberto por pequenas plantas esverdeadas. Lembrou do convite: “Sente aqui. Não parece um banco de flores verdes?”
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Flores verdes… Estranho. Pensara nas rosas, nas margaridas, nos lírios, no jasmim, que crescera livre junto à varanda de sua casa materna. “Como era lindo o jasmim!” À tardinha, mais de 50 pequenos pássaros voltavam para o caramanchão e ali ficavam até o dia amanhecer, para então revoar e, no fim do dia, novamente regressar. Porém, “flores verdes” lhe soara estranho. Se o médico assim falara, deveriam existir, pensou.
Não tardou para retornar aos pés já não sendo apenas limpos, mas acariciados. “Espera um pouco”, acrescentara o médico. Ele havia cavado uma pequena poça. Titubeante, ela mergulhara seus pés na água mais farta. Farta e sedenta como só as águas das nascentes puras podem ser. A contragosto, dissera ao médico que já estava livre do lodo e precisava voltar para suas tarefas junto aos pacientes. Também ele, Cristian, ansioso por ali permanecer, entendera que deveriam retornar.
Um leve sorriso, destes que se vive internamente, iluminou os olhos escuros de Eva. Brincou consigo mesma. Teria sido Antônio o seu Adão, e Cristian a sua verdadeira paixão? Amara seu marido. Fora sua parceira. Abandonara a casa onde nascera e crescera para conviver com Antônio. Até se empregara no Sanatório para zelar por seu marido. Havia largado tudo.
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Tudo que não era muito. Uma simples casa, construída na pequena propriedade. Moradia instalada a 100 metros do corredor que levava à vila, onde, aos finais de semana, os moradores locais celebravam encontros comunitários. Impossível não recordar dos sapatos que levava na sacola para calçá-los já próximo ao pavilhão comunitário. Tivesse usado eles desde a saída de casa, e ficaram repletos de barro.
Agora, Eva se permite rever seus pés. Os mesmos lavados por Cristian e abrigados nos sapatos calçados junto à vila. Porém, havia que seguir. E assim faria, não fosse um ruído ensurdecedor. Por certo, Antônio não teria suportado. Era o ranger de dentes de uma motosserra. Eva subiu o barranco. Apurou os ouvidos para identificar a origem da invasão perturbadora. Com ela, a floresta inteira se fez entrincheirada em si mesma.
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O incômodo rangeu fundo no corpo de Eva e na floresta. Seguiu-se um baque mortal. Uma gigantesca árvore fora abatida. Era hora de convocar as forças da natureza. Eva sussurrou ao ar nativo a mensagem convocatória. Todos os habitantes da mata deveriam se encontrar, logo ao escurecer, junto à pedra encantada. E assim fariam.
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