Se a capital argentina sugere que por lá os ares são bons, parece que ultimamente andam meio agitados, para não dizer de todo turbulentos. O novo presidente, Javier Milei, de extrema-direita, mal assumiu o cargo e já se vê às voltas com a dificuldade da implantação de uma série de medidas, por sinal bastante radicais. A Lei Omnibus, um pacote de reformas de cerca de 600 itens, propõe uma reformulação drástica de quase toda a legislação e da rotina socioeconômica nacional. Tudo para estancar um processo inflacionário sufocante e tentar dar uma guinada em favor da estabilidade e da retomada.
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Nada que promete ser fácil ou simples, como adverte a jornalista Janaína Figueiredo, autora de um livro sobre o país vizinho, ¿Qué pasa, Argentina?, lançado em 2023 pela editora Globo. Ela é uma das comunicadoras brasileiras talvez mais familiarizadas com a realidade de nossos hermanos. Ao lado da mãe, fixou-se em Buenos Aires quando era adolescente, ali cresceu e se formou. Depois casou com um argentino, com o qual tem dois filhos, igualmente de nacionalidade argentina.
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Em entrevista exclusiva ao Magazine, concedida por WhatsApp, analisa os primeiros meses do governo Milei e as peculiaridades da relação entre Brasil e Argentina.
Janaína Figueiredo
Jornalista e escritora
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Magazine – Em “¿Qué pasa, Argentina?”, já abordas o que poderia significar um governo Milei. Como avalias e o que pensas de Milei no poder, após essas primeiras semanas?
Eu acho que o presidente Javier Milei está fazendo um governo ousado e, sendo quem ele é, era a opção que todos achávamos que faria. Ele disse durante a campanha que não iria optar pelo gradualismo, como o Macri fez. Então, a gente sabia que ele ia fazer uma opção ousada, e que seria arriscada, pois uma opção ousada para um presidente que, como se diz na Argentina, tem “hiperminoria parlamentar”, e não tem governadores nem prefeitos, era um enorme desafio.
Ele não tem um partido forte, não tem presença expressiva no parlamento e não tem estrutura de poder institucional que o sustente. Então, se você quer avançar com um projeto ousado, sem ter a estrutura, o apoio, a máquina política, vai enfrentar enormes desafios e obstáculos. E é o que está acontecendo. Ele não está conseguindo aprovar as leis no congresso; teve que fazer várias concessões, talvez aprove uma parte, mas a parte fiscal, que é essencial para equilibrar as contas (um dos principais compromissos), ele tirou da Lei Omnibus.
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Então, provavelmente ele vai optar pela tesoura, né? Pela serra elétrica, como mostrou na campanha. Só que uma coisa é você ser um candidato à presidência com uma serra elétrica, e outra coisa é você aplicar a serra elétrica. O impacto teme-se que vai ser muito grande. Então, acho que ele está fazendo apostas que podem transformar o seu governo num governo de difícil viabilidade. Acho que as próximas semanas e meses vão ser importantíssimos para a gente saber se o governo de Milei é viável ou não, porque os 56% que ele obteve nas urnas, como eu disse numa coluna de O Globo, não são um cheque em branco, e isso vai se esvaziando com o tempo diante da falta de resultados.
A partir de sua experiência como jornalista, e de alguém que inclusive cresceu em Buenos Aires, o que entendes que explica a ascensão de Milei? Isso tem mais a ver com a situação da Argentina em si, ou como reflexo da ascensão da direita em várias outras nações?
A ascensão do Milei está diretamente vinculada à situação econômica e política da Argentina. É claro que ele está numa rede de extrema-direita global, onde estão Donald Trump, Jair Bolsonaro, Victor Orbán, entre outros, mas ele é um fenômeno ao mesmo tempo tipicamente argentino. Num país que está há décadas em decadência e não consegue superar as sucessivas crises econômicas, surge um candidato de extrema-direita que promete devolver a Argentina à gloria do passado, tornar novamente a Argentina uma potência, acabar com a inflação, que é o principal flagelo que afeta os argentinos. Então, ele é as duas coisas: ele é uma liderança de extrema-direita que se insere numa rede global, mas ele também é consequência da crise política e econômica especificamente do seu país, a Argentina.
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Se alguém pedisse para definir o “argentino”, a partir de tua forte proximidade com esse país e seu povo, como o apresentarias?
Bom, eu falo muito sobre isso no livro, né? Acho que o argentino é uma pessoa por um lado muito sofrida, que tem uma tendência ao drama, o que é compreensível, dado que eles vivem num drama permanente, então são pessoas que de tudo fazem uma catástrofe, tudo é uma desgraça. Não tem aquela coisa do brasileiro de encarar as situações com otimismo, a gente vai dar um jeitinho, e essa coisa de “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”; essa expressão não existe em espanhol. Existe “estamos em el horno”, “estamos fodidos”, eles vivem dizendo “esse país é uma merda”, “a única saída é Ezeiza”, o aeroporto internacional. Então, é um povo muito dramático, muito sofrido, obviamente pessimista sobre o futuro.
Mas ao mesmo tempo devo dizer que o argentino é muito resiliente. O que o argentino aguenta, olha, vou te dizer!, não é para qualquer um. Eu digo no livro: a Argentina não é para fracos. E é um povo criativo, porque eles conseguem ir driblando as crises e se adaptando a 50 tipos de dólar, enfim, eles vão na criatividade e na resiliência, e isso também é muito impressionante.
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O que Brasil e Argentina têm especialmente a ganhar um com o outro? E o que perdem com a dificuldade de diálogo, nas conjunturas específicas, antes no governo Bolsonaro e agora no governo Lula?
O Brasil e a Argentina têm tudo a ganhar. O Celso Lafer dizia que a relação com a Argentina para o Brasil não é uma opção, é um destino. É nosso principal vizinho, é um sócio estratégico; deveria ser, nesse momento obviamente não é, o comércio entre os dois países continua robusto. Então, o Brasil tem tudo a ganhar com a Argentina indo bem, e a Argentina tem tudo a ganhar com o Brasil que vai bem. E os momentos de crise são muito negativos para a relação e para cada país individualmente.
O melhor que pode nos acontecer é que os dois países estejam em sintonia, com bom diálogo, ou trabalhando juntos, com agendas comuns e sempre torcendo um pelo outro, um sempre ajudando o outro. É o melhor dos mundos; as outras opções, já ficou claro, são muito ruins para os dois países.
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