Não é pequeno o desafio de traduzir grandes obras e grandes autores da literatura mundial, devido à complexidade de elaboração e de estilo que muitas vezes envolvem. E essa responsabilidade certamente torna-se ainda maior quando o escritor em questão foi agraciado com o Prêmio Nobel e escreve em língua não amplamente conhecida. Pois foi essa a missão que assumiu o cearense Leonardo Pinto Silva, de 53 anos: ele traz para o português, diretamente do norueguês, romances de Jon Fosse, de 64 anos, que em 2023 recebeu a maior honraria dada a um escritor.
E a empreitada de Leonardo no âmbito da tradução, como ele próprio refere, em conversa com a Gazeta do Sul a partir da Noruega, onde se encontrava ao longo desta semana, participando de um importante evento literário nacional, é marcada por muitos acasos. Felizes acasos. Ele tinha 17 anos quando deixou Fortaleza, sua cidade natal, para participar de um programa de intercâmbio no exterior. Tinha acabado de concluir o ensino secundário. Seu destino foi a Escandinávia, mais especificamente a Noruega. Por um ano, entre 1988 e 1989, ficou na ilha de Karmoy (diretamente ligada à cidade de Haugesund, na qual Fosse nasceu).
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De volta ao Brasil e a sua terra natal, cursou Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, e atuou junto ao jornal O Povo, na capital cearense. Mas o domínio da língua norueguesa, entre outras da Escandinávia, se revelaria uma preciosidade. Ocorreu que em 1993 a editora Companhia das Letras lançava por aqui o best-seller mundial O mundo de Sofia, do norueguês Jostein Gaardner, mas com tradução feita a partir do alemão, pois não havia, na época, alguém na equipe de contatos da editora que o poderia fazer a partir do original. Leonardo contatou a Companhia das Letras e se candidatou a transcrever a partir dessa língua.
O teste para ele acabou sendo a tradução de outra obra-prima: livro autobiográfico do aventureiro Thor Heyerdahl, Na trilha de Adão: memórias de um filósofo da aventura. Mais tarde, de fato assinou a tradução do já clássico livro de Gaardner. Mas não só. Na virada do século, transferiu-se para o Rio de Janeiro, e em 2004 se mudou para São Paulo, onde se casou e é pai de dois filhos adolescentes. E mergulhou de vez na tradução.
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Em sua carreira, trouxe para o português inúmeras obras de autores da Escandinávia. Entre eles Fosse, que inclusive teve a oportunidade de entrevistar na semana passada, durante sua estada na Noruega, a convite para uma residência e para prestigiar um evento literário.
Traduzindo Jon Fosse
No ano passado, quando o Nobel foi atribuído ao norueguês Jon Fosse, o tradutor cearense Leonardo Pinto Silva acabara de traduzir um romance do autor, Brancura, para a editora Fósforo. Em simultâneo, a Companhia das Letras colocava nas livrarias também um primeiro livro de Fosse em seu catálogo, É a Ales, com tradução diretamente do norueguês feita por um gaúcho, Guilherme da Silva Braga, amigo de Leonardo.
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Era a primeira vez que o novo ganhador do Nobel tinha obras suas trazidas ao português, no Brasil, diretamente do original. Antes, apenas a editora Tordesilhas lançara um livro dele, Melancolia, em 2015, com tradução de Marcelo Rondinelli feita a partir do alemão. O esforço de Leonardo e Guilherme de traduzirem a partir do norueguês e outras línguas escandinavas foi reconhecido: no ano passado, ambos receberam um prêmio, na Noruega, por seu esmero na tradução de autores para o português.
Recentemente, a Fósforo colocou nas livrarias o romance A casa de barcos, de Fosse, versão assinada por Leonardo. Esse livro fora lançado originalmente em 1989 na terra natal do autor, justamente na época em que Silva participava de intercâmbio e estava por lá. Já Guilherme seguiu com a tradução de Trilogia, que a Companhia das Letras lançou. Vários títulos de Fosse devem chegar ao longo do ano, traduzidos por Leonardo (Eu sou o vento, O nome, Vai vir alguém e Poemas em coletânea, todos no prelo, pela Fósforo). Em 2025 deve vir Septologia, citada como a obra-prima do autor.
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Ao longo desta semana, o cearense se encontrava em feira literária mundialmente renomada, na cidade de Lillehammer. Deve estar de volta ao Brasil na próxima semana. Conforme ele, há expectativa de que autores noruegueses que ele traduziu estejam na Feira do Livro de Porto Alegre deste ano, desde que o evento venha a ser realizado, o que ainda não foi confirmado, em decorrência da enchente. Estava prevista a vinda de Monica Isakstuen, autora de Raiva (Rua do Sabão, 2021), e do chileno-norueguês Pedro Carmona-Alvarez, autor de Chiquitita (a sair pela Nós). Outro escritor, Jon Ståle Ritland, autor de Obrigado pela comida, irá a Campina Grande, na Paraíba.
Leonardo frisa que os norugueses desenvolvem intensa política de fomento e divulgação literária, apoiando massivamente a tradução e a edição, bem como a presença dos autores, em todo o mundo.
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Entrevista – Leonardo Pinto Silva, tradutor
- Magazine – Além da obra de Jon Fosse, como era ou passou a ser o contato do senhor com a literatura da Noruega e, mesmo, da Escandinávia?
Foi por puro acaso. Eu havia morado na Noruega, coincidentemente na mesma cidade onde o Fosse nasceu, na época em que A casa de barcos veio ao mundo. Evidentemente, nunca me passou pela cabeça que um dia poderia atuar como tradutor daquele idioma que estava aprendendo ainda adolescente. Tampouco tenho filiação acadêmica. Sou um prático do ofício, e só depois é que fui complementar minha formação com alguma teoria. Mas a vida acabou enveredando nesse caminho, eu consegui preservar o idioma na cabeça, não sei bem como, e cá estou. - Como se estabeleceu a relação com a Noruega, e as circunstâncias nas quais o senhor passou a dominar a língua em um nível tal que permite traduzir um autor Prêmio Nobel?
Veja, isso não é exatamente um problema. Se eu tivesse ido viver na China a essa altura, estaria traduzindo de alguma variante do chinês; se tivesse vivido na Finlândia, estaria traduzindo do finlandês, e assim por diante. Com isso quero dizer que se aprende um idioma muito fácil quando se é jovem e se está imerso num contexto cultural, por mais distante que seja esse idioma da sua língua materna. O grau de dificuldade pode variar, mas no fim esse processo acontecerá, orgânica e imperceptivelmente. Do contrário, crianças de 4, 5 anos não seriam então fluentes na língua, qualquer língua, que aprendem dos pais. Digo isso para enfatizar que não me considero particularmente superdotado nesse aspecto; qualquer um poderia estar no meu lugar, dadas essas condições. Sim, eu gosto de ler, sou jornalista de formação, sempre gostei do texto, sobretudo escrito, e sou uma pessoa curiosa. Isso, sim, ajuda. - No processo da tradução, o senhor chega a estabelecer contato com o autor a fim de tirar dúvidas? Ou, em outra medida, surgem dúvidas durante o avanço do trabalho de tradução?
Sempre que possível, o contato com o autor é fundamental. Nem todos estão disponíveis, claro. Ibsen e Vesaas, por exemplo, só em sessões mediúnicas. Mas todos os autores vivos que tive o prazer de traduzir foram bastante solícitos e esclareceram dúvidas importantes ao longo do processo, Fosse inclusive. Claro que isso não seria possível sem a internet. E quero crer que uma dose extra de boa vontade que os noruegueses demonstram em relação ao Brasil também ajuda. Já recorri a autores para esclarecer melhor palavras que em norueguês têm gênero neutro e não flexionam o plural. Lembro agora de dois exemplos. Odinsbarn, de Siri Pettersen, ainda inédito. Seria “a filha” ou “o filho” de Odin? Uma vez definido o gênero, seria singular ou plural? A autora me ajudou a esclarecer uma dúvida que, de outra forma, só me caberia adivinhar. Acabou sendo A filha de Odin. O mesmo vale para Mine venner, de Monica Isakstuen, a ser lançado em breve pela editora Rua do Sabão: “meus amigos” ou “minhas amigas”? Ainda não decidimos. - O senhor entrevistou Jon Fosse. Que percepção ele tem da literatura brasileira e como vê o fato de sua obra estar repercutindo no País?
Fosse foi muito solícito e receptivo, já tínhamos contato por e-mail, conversamos bastante sobre vários assuntos e ele ficou particularmente curioso em saber como um brasileiro foi parar na pequena cidade onde ele nasceu ainda no final do século passado. Mas não chegamos a falar especialmente sobre a literatura em português, exceto quando lhe mencionei que a maneira como ele usa a língua para dar forma a sua obra evoca o modo como o fazem Saramago, a quem ele evidentemente já conhecia, e Guimarães Rosa, que está traduzido para o norueguês, mas de quem ele nunca tinha ouvido falar. Fosse traduz do alemão e tem uma especial relação com autores desse idioma. - O que mais chama a atenção do senhor em relação a temáticas, estilo ou características autorais de Fosse?
Ele é único, e quem sou eu para discordar do que disse a Academia Sueca, que lhe outorgou o prêmio pela capacidade que tem “de dar voz ao indizível”. Reconheço que não é um autor para todos os gostos, mas recomendo a qualquer um que se interesse por literatura que, por sua conta e risco, se aventure nessa leitura. - Qual dos livros dele, já traduzidos pelo senhor, mais o cativou, e por quê?
Difícil dizer, já se aproximam de dez títulos e todos eles me assombram, no bom sentido. Mas creio que A casa de barcos, por razões sentimentais minhas, e por se tratar de uma prosa do início da carreira do autor, me é especialmente caro. - Que títulos do autor estão no horizonte para tradução, no Brasil?
A Fósforo irá lançar até o fim do ano uma seleta de poemas e de teatro, e no próximo ano o famigerado Septologia, que lhe chancelou o Nobel. A pequena Zain lançará Manhã e noite + libreto da ópera homônima baseada no livro, estes traduzidos por mim, assim como Brancura e A casa de barcos. A Companhia das Letras já lançou É a Ales e Trilogia, ambos traduzidos magistralmente por Guilherme da Silva Braga a partir do original. E a Tordesilhas tinha lançado, ainda em 2015, Melancolia, com tradução indireta de Marcelo Rondinelli. - Além de Fosse, que outros autores, ou de que outras línguas, o senhor traduz ou até mesmo cogita traduzir?
Quem fala norueguês fala automaticamente dinamarquês e sueco, da mesma maneira como alguém que fala português deveria dominar o espanhol, na minha opinião. Estes eu traduzo. Eu já dominava o inglês, do qual também traduzo, e havia estudado alemão e francês antes de ir morar na Noruega, mas meu conhecimento desses últimos é apenas instrumental. - Há temas da literatura norueguesa, ou da Escandinávia, que mais fortemente dialogam com a nossa literatura e a cultura brasileiras?
Eles têm uma especial relação com a natureza, e esse modo de vida é fortemente espelhado na literatura, seja ou não ficcional. Fosse, por exemplo, ecoa a Noruega profunda no falar dos rincões do Brasil: ele é aquela tia do interior de Minas, o gaudério do Pampa, o pescador do litoral nordestino. Pretender dar à prosa de Fosse um aspecto urbano e escorreito seria um grande equívoco. - Traduzir literatura era algo que estava no horizonte de interesses do senhor? Como foi passar a se interessar e a se dedicar a essa atividade?
Como disse, foi um acidente de percurso. Um felicíssimo acidente de percurso. - Pela sua percepção, como é a relação dos noruegueses com a leitura?
Essa tradição remonta às sagas. O clima extremo convida à intimidade e à reflexão, eles não têm a margem de manobra que temos nos trópicos para aproveitar a vida ao ar livre com a generosidade que nos permite, ou permitia, o clima brasileiro. O norueguês mais célebre de todos os tempos é um escritor, não um jogador de futebol. Ibsen, não Pelé. Nada contra Pelé, aliás, nem contra o futebol, que é um esporte belíssimo. Só acho que ocupa muito da nossa agenda e se presta a uma certa imbecilização do brasileiro. Paciência. Escolhemos viver assim. Então, a relação da Noruega com a literatura é diferente da nossa. À parte isso, uma política de Estado ativa e generosa faz do país o melhor lugar do mundo, indiscutivelmente, para quem se interessa, gosta, trabalha e promove a literatura. Estou em Oslo a convite, numa residência literária, seguida de um festival, por causa disso.
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